quarta-feira, 20 de julho de 2016

MAL COMPARANDO

Mal comparando
é como tivessem acendido a luz na minha cara
quando eu tanto precisava de escuridão.

As formas, como sabemos,
– as mesas, as caixas, as janelas –
mostram-se na claridade tal como são,
rudes sejam ou mais delicadas,
e carregam cores e formas
que o olhar nos obriga à imediata aceitação.

A escuridão, por outro lado,
como uma poetisa grega, apenas sugere,
e cabe à imaginação preencher as lacunas
– colorir as mesas, as caixas e as janelas –
e ordenar os móveis de forma lógica
para que neles o cego não tropece.

A luz do quarto,
mal comparando, queimou a minha inquietação.
É preciso apagar tudo outra vez.


Danilo del Monte

domingo, 27 de setembro de 2015

NÃO GOSTO DE VOCÊ

Eu não gosto de você.
Não abriria mão da minha vida por você,
Não deixaria de olhar os transeuntes na praça,
E nem seria jamais uma extensão do teu ser.

Eu até gosto de você,
Mas não tanto quanto gosto de tomar café pela manhã.
Não gosto de você como gosto de cantar,
De me exiliar por completo de minha lucidez
Ou de repassar as páginas de um romance do século XIX.

Como deve ser triste – ser – você.
Como deve ser triste condenar o suicídio cotidiano,
Ignorando que o fanatismo pela vida é também uma forma de se matar.
Por nada na vida eu seria uma parte de você.

Sim, eu gosto de você,
Mas não tanto quanto gosto dormir com as primeiras horas de sol,
Não como gosto de descobrir um disco novo
Ou de captar um detalhe perdido na tela que ninguém percebeu.
Gosto de me inclinar na janela em dia de chuva.
Gosto de comemorar um gol e praguejar a bola na trave,
Gosto de escolher o caminho mais longo
O bar menos elegante,
A vida mais delicada.
Gosto de andar refletindo na minha humilhação
– muito mais do que gosto de você –

Só que eu realmente gosto de você,
Mas eu também gosto de mim – e do que fiz comigo, gosto também –
Te deixo em reserva, em estado de espera,
Para que me salve quando eu não mais me pertencer,
Quando eu não puder mais sentir minha agonia,
Quando eu não gostar mais de mim e das pulsações que norteiam minha visão.

E só então, por assim dizer,
Eu – por entrega – serei
Você.

Danilo del Monte

imagem: David Parks Photography.

domingo, 12 de julho de 2015

ELA COMPENSAVA TODAS AS FALTAS

Era bonita
- ou pelo menos eu assim a tinha -
Não faziam falta as faltas que lhe via
quando escondia com as mãos a face enrubescida,
vexadíssima ao ser enaltecida
por elocuções que não podia captar.

Não sabia que do Cosme Velho um bruxo assombrara o país,
e que toda a Paris se arrastara pelas ruas atrás de seu esquife.
Tinha a voz melodiosa - maliciosa por estado natural -
mas nunca lhe ocorrera suplicar em canto
pelo fim das saudades conduzidas pelo mar.
Era Remédios caminhando nua pela sala,
desafiando e convidando ao suicídio os suicidas.
Era muda. Era clarividente. Era tediosa.

Não sei bem se tinha uma beleza etérea
ou se era o ar de personagem que morreu na fita bruta.
A ela não fazia diferença o vício dos trópicos
ou a culpa do expatriado na Sibéria.
Não podia ser rosa mais do que uma rosa,
nem compreendia ser pessoa algo além do singular.
Era simples tal qual sua existência de balzaquiana acriançada,
festiva no desconhecimento da ambiguidade de um sorriso.

Danilo del Monte

quarta-feira, 27 de maio de 2015

DA MINHA MORTE

Sinto que morri.
Padeci em algum leito sujo de um hospital mal preparado.
Senti dores no peito,
Dores no coração,
Senti dores nas articulações do corpo
E nas convicções que trazia em mim.

Sinto que morri
Sem saber contar os dias do meu sofrimento.
Agonizei na invalidez,
Praguejei contra as paredes e fiquei vexado,
Dei escândalo frente à fatalidade
E pedi clemência.

Nesse período pós morte, experimento
Uma sensação de agonia e de realidade
E vejo tudo com menos brilho e mais nitidez.
Trago os meus olhos furados,
Vazados de fora a fora
Por luzes e cacos de vidro,
Enquanto os meus ouvidos pingam
Monotonamente
Notas imaculadas misturadas a sangue coagulado.

Sinto que morri
Completamente abandonado pelas ilusões,
Às vinte e três horas de um dia santo,
No leito sujo de um hospital mal preparado
Onde circunspectos doutores jogam baralho no corredor.

- Morto... morto...
Enlouqueci!

Danilo del Monte


imagem:
Edvard Munch - Ao Leito de Morte

quarta-feira, 18 de março de 2015

HÁ CRIANÇAS QUE CHORAM NO VENTRE



Resolvam,
Não cientistas, mas literatos,
O incrível mistério das crianças que choram no ventre de suas mães.
Olhando pela janela do terceiro andar
O fenômeno parece-me raríssimo,
Mas sei que há mães que acordam no meio da noite,
Em seus últimos meses de gravidez,
Atordoadas pelo pranto agudo do bebê em formação.

Literatos, expliquem-se,
E alertem para a trágica existência das crianças que soluçam antes de nascer.


Danilo del Monte

imagem: CARYBÉ - Mãe Brincando Com Seu Bebê

sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015

METADE

... e foi assim que metade de mim eu joguei fora,
e essa metade - fio de Ariadne - conseguiu voltar,
mas quando chegou era a metade de metade.

do que voltou, metade agora vai espontaneamente embora.
metade minha se desespera, corre atrás dela e se apavora
enquanto que a outra metade reprime o soluçar.

 ... e é assim que, do meu olhar, metade se umedece e chora

outra metade fica estática e observa ela afastar.



Danilo del Monte

terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

ERA UM BOI



Durante todo esse tempo,
Como pôde nos enganar a todos nós?
Caminhava sobre duas pernas,
Falava pelos cotovelos,
Tirava fotos de frente para o espelho
E as publicava com frases feitas e mal articuladas.

Todo esse tempo,
Comia de garfo e faca.
Óculos escuros nos dias de sol.
Espremia-se no trem das sete horas que partia da Luz
E durante as noites não fazia outra coisa
Senão correr atrás de mulher.
Quem seria capaz de desconfiar?

Era um boi.
Apontemos agora o dedo na cara,
Soterrada sabe-se lá onde, esquecida.
Costelas, carnes musculosas,
Apontemos agora o dedo para o fígado,
Para os intestinos
Que estão expostos, pendurados, nas vitrines dos açougues.
Não era homem. Era boi.

A caminho do flagelo, lhe enfraqueceram as pernas,
E com as mãos espalmadas no chão,
Como um boi,
Parou de quatro na linha demarcada,
Abaixou a cabeça, ofereceu o pescoço,
E apenas sentiu um tremelique no estômago
Quando soou a sineta
Que alerta os funcionários do matadouro.
Mais um, disse alguém.
Vamos trabalhar.

Era um boi porque caiu de joelhos
Quando o bate-estaca lhe acertou a nuca.
Como homem, tentou gritar,
Armar um escândalo,
Mas como boi,
O que se ouviu foi um mugido tímido e dolente
Como quem diz que não tem nada a dizer.

Sucumbiu.
Ainda trazia os olhos vivos
Quando as afiadas facas de corte
Começaram a lhe rasgar as carnes
- em bifes, pedaços, tiras -.
Com serras, lhe cortaram os ossos.
Com ganchos, lhe penduraram pelos pés
Que há minutos atrás tinham caminhado
Até a linha amarela que indica o sofrimento.
Sem uma queixa. Sem um protesto.
Sem uma única tentativa de subversão
À ordem a que estão sujeitos aqueles que devem morrer.
Sem uma lágrima na hora do perigo.

Não era um homem, isso é óbvio,
Era um boi,
Mas não porque fosse um bovino,
Não porque ruminasse,
Não porque fosse grande, forte,
Da compleição física de um boi. Não.
Mas sim porque Torquato Neto já havia o condenado,
Desde muito tempo,
A ser boi.

Danilo del Monte


* fotografia de Rodrigo Marcondes

quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

DEDICADO A NINGUÉM



Aí esta
- sirva-se dele -
Feito para cuspir,
Não para vangloriar.
Aí está.

Aí está o seu pedaço
Rabiscado de papel.
Traz pobreza.
Traz miséria.
Traz infelicidade.
Imagine que a vivacidade de outrora
Jaz apodrecida
Em qualquer buraco
Lamacento do centro da cidade.
Sirva-se dele,
- tanto que pediu, infernizou -
O testamento maldito
Pelo qual herdara angústia
E sofreguidão. 

Aí está,
Feito para cuspir,
Feito para pisar,
Feito para escarrar
Sobre rascunhos ilegíveis
A irritação de se ver desmascarado.

Danilo del Monte

sábado, 3 de janeiro de 2015

ÓLEO SOBRE TELA



Não sei por que me perturbam tanto
Esses olhos arregalados,
Essas bocas cerradas e essas expressões vazias.
São rostos ou são máscaras?
- Rostos ou máscaras, pelo amor de deus? -
Sinto como se a multidão, com seu lento caminhar,
Fosse me atropelar na calçada no parlamento norueguês.
Sapatos ou botas de couro,
Largos ou estreitos, com saltos ou não,
Engraxados ou sujos de lama,
Todos me passam sobre o peito cancrado
Como o desfile de carnaval do sanatório.
Não sei precisar se há dor física nesta tragédia
Ou se não passa, tudo isso,
De uma melancolia tão vazia
Quantos as expressões que logram me atropelar
Na calçada no prédio do parlamento norueguês.

Na verdade, não importa.
Estamos salvos porque existe do outro lado,
Caminhando em sentido contrário,
um solitário transeunte, talvez cabisbaixo – não se sabe -
e provavelmente triste. Por deus,
Como é bom que esteja triste. Estamos salvos.
Logo ali existe um homem capaz de sentir,
Ali, cambaleando pelo meio da rua,
Um homem capaz de se machucar com tudo e tudo expressar.
Quem pode negar que este viandante ouve
- neste exato momento -
O repertório limitado de seu próprio caminhar?

Mas, cruzes,
Esses passantes da calçada do parlamento norueguês,
Com seus olhos arregalados, bocas cerradas e expressões vazias,
Quase o levam à loucura. Vigiam-no.

Nosso homem,
Aquele que anda cabisbaixo em sentido contrário,
Pode sentir os olhares da multidão,
Apercebe-se de que está sendo fitado de forma estranha,
E desconfia que aqueles olhos arregalados
São capazes de adentrar sua cabeça
E fazê-lo reconsiderar tudo o que havia cravado como verdadeiro em sua vida.
Vasculham meias certezas, vestígios de ideias
E demônios escondidos atrás das colunas da imaginação.
Que sensação estranha que o acomete.
Que sensação incômoda de, do dia para a noite,
Sentir que não há senão espaços vazios em sua cabeça,
De imaginar que todo o conteúdo de sua mente
Esvaiu-se como a vida selvagem de um território
Que de repente se tornou inóspito. Que pavor...

E então temos o grito...
Um só, apenas um grito,
Infindável, dolente e aflito.
Um grito interminável e ensurdecedor
- embora inaudível -
Um grito visual.
Os homens da calçada do parlamento norueguês,
Com seus olhos arregalados e bocas cerradas,
Jamais poderão gritar.

Danilo del Monte

quarta-feira, 22 de outubro de 2014

DAS COISAS QUE SOBRAM



Então, o que sobrou?
Um toco de árvore fincado à terra.
Sobraram quatro ou cinco páginas
Mal escritas, mal inspiradas e muito mal desenvolvidas.

Quatro ou cinco noites mendigadas,
Algumas doses de cachaça mal tragadas,
Algumas conversas muito mal articuladas.
Quando foi que nos tornamos tão artificiais?
Da insanidade de outras eras,
Ficaram lampejos sóbrios e doentios
Da sobriedade que tenta nos matar.
De Pompeia restam múmias,
E não choramos por Troia o mesmo que choramos por Pompeia. 

Então, o que sobrou?
Algumas mensagens vazias de felicitações.
Sobraram quatro ou cinco presentes
Que o descaso tenta a todo custo destruir.

Danilo del Monte

quinta-feira, 28 de agosto de 2014

DUAS FACES



Tinha um rosto
- olhos abertos, nariz e boca -
E tenho certeza que poderia sorrir
Se assim permitisse sua profissão.
Tinha um rosto
- olhos cerrados, nariz e boca -
E não poderia mudar de expressão
Nem com toda a força do desejo.

Na complexidade deste mal estar,
Tentei ser imparcial e frio
Como a vida que cruelmente nos foi emprestada.
Não consegui.
Sendo puxado pela serenidade do aflito
E pela perturbação da frígida,
Sucumbi,
Perdi o maravilhoso senso de lucidez
E ainda agora procuro me levantar da terra.

Mas e então,
Entre esses dois que se ofenderam tanto,
Que tanto fugiram um do outro,
Que tanto se evitaram
E que agora parecem se amar,
Como será a convivência?
Não há riscos e nem faltas.
Não há erros e nem medos.
Não há.

E no fim,
Como quem se sente obrigada
A uma frase de efeito para encerrar a trama,
Ergue os braços, abre os olhos que nunca fechou
E balbucia:
“Agora que me vistes, jamais esquecerás de mim; E ainda que fujas, ainda que chores, toda e qualquer referência da tua vida trair-te-á em benefício meu. É só uma questão de tempo.” 

Danilo del Monte