sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

SRA. DONA INSPIRAÇÃO



Minha vida com a Sra. Dona Inspiração é ultimamente um casamento em crise. Ela, fechada, magoada, sentida, bate a porta do quarto com estrondosa violência e eu me deito no sofá. A lua-de-mel, que deveras foi de mel, foi interrompida violentamente pelo próprio Mundo, quando veio a mim e se mostrou palpável, fixo, material e necessário. Ele me puxou, me trouxe ao chão e afirmou: “Teu lugar é aqui”, e eu, que nunca soube conciliar a felicidade com a razão, nem o vermelho com o negro, fui andando sobre as pegadas já trilhadas que nenhum vento apaga, e esqueci que havia me casado.
            Nosso matrimônio nunca foi de extravagâncias, éramos discretos como dois felinos em caça, mas ela andava o tempo todo comigo, e eu vivia atolado nela, ela atrelada a mim. No fim, era como se qualquer predestinação que eu não acredito, para zombar do meu ceticismo, me desse de presente a musa que de tantos mortos eu invejava e que me visitava em sonhos que viravam pó. Meus sonhos, de uma forma ou de outra, continuaram virando pó, e eu ainda invejava a musa dos mortos que nunca morrerá, mas eu era dono de uma, dono da Inspiração que me mantinha cativo em um paradoxo literário aparentemente eterno.
            A diferença entre a empolgação e o amor eterno é que a empolgação dura mais, já me avisava Oscar Wilde, e eu nem dei atenção...   Se, quando criança, ela passava e se roçava em mim como um gato trança os pés do dono, hoje ela bate a porta do quarto na minha cara e gira a chave com extravagância para eu ouvir e saber que seria atrevimento tentar abrir.
            A minha traição se deu quando o Mundo se apresentou a mim como obrigação, e me mostrou, sem nenhuma chance de contestação minha, que era mais real do que qualquer casamento meu. Rendi-me, abdiquei de minhas armas sob o medo de sucumbir pela fidelidade, e me lancei a ele para fazer parte dele. Dizem as línguas que Inspiração vivia a me buscar enquanto eu rolava na cama pomposa das amantes vazias e interagia de igual para igual nesse imenso cenário de dementes. Se Inspiração me fazia criar, o Mundo me obrigava a copiar tudo que se fazia necessário copiar.
            O tempo jamais olhará para mim. Jamais voltará o caminhar, assim como não pisará em falso. O tempo não tropeça em seus caminhos. Sinto falta da minha vida inspirada do matrimônio, e dos filhos que fazíamos no quarto, na sala, caminhando pela rua ou dentro de um ônibus numa curta ou longa viagem. Mas a porta do quarto permanece trancada e o barulho da fechadura girando foi tão estrondoso que ainda agora posso ouvi-lo, e ainda agora ele me assusta. Agora, nossos raros momentos juntos se dão nas minhas curtas horas de embriaguez em que consigo esquecer quem me envenenou e busco, com um sorriso, a minha musa; e ela ao me ver cansado, maltrapilho e maltratado, como nos versos de Chico, me abre os braços e um sorriso, e canta, como se a ausência de alguns anos fosse curada nessas minhas curtas horas.

Danilo del Monte

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