segunda-feira, 21 de março de 2011

MILLER E SEU TRÓPICO DE CÂNCER

Muito cuidado ao ter nas mãos “Trópico de Câncer”, a obra prima de Henry Miller, pois o que terá em sua frente não é um livro, mas uma bomba. Suas letras não denunciam apenas o autor, ou o mundo moderno, ou a condição ou esperança humana, mas denuncia também quem as lê, de modo que a bomba em suas mãos pode explodir dentro ou fora de sua cabeça.

A narrativa em primeira pessoa se desenrola na Paris boêmia do início do século XX, onde as prioridades da vida são o sexo e a arte, e assim, junto com o personagem, o leitor rola na cama das meretrizes baratas, dorme nas pensões em deplorável estado, passa fome com os artistas e se embriaga nas tabernas imundas. Mas com a liberdade de se viver na boemia, começa a haver na cabeça do autor, do personagem e do leitor, que andam de mãos dadas o tempo todo, a total desilusão da vida e de tudo que ela é composta ao abrir os olhos para a realidade. A humanidade parece de repente carente de algo que sequer conhece ou que pode, se alcançado, vir a decepcionar.

. No meridiano do tempo não há justiça: há apenas a poesia do movimento criando a ilusão de verdade e drama. Se a qualquer momento e em qualquer lugar encararmos frente a frente o absoluto, desaparece aquela grande simpatia que fez homens como Gautama e Jesus parecerem divinos”

Miller nasceu em Nova York no ano de 1891, fez parte do rol de artistas que foram despejar a vida nos botecos de Paris entre os anos 1920-1930 e experimentou o grande alvedrio entre artes, garrafas e libertinagem. Suas narrativas continham uma liberdade de linguagem desconcertante, que denunciava o mundo moderno, suas obsessões e fraquezas. Faleceu em 1980, na cidade de Los Angeles.

“Trópico de Câncer” foi publicado pela primeira vez em 1934 e logo foi acusado de pornográfico e obsceno, ficando proibido nos EUA até o ano de 1961. Hoje, sua leitura, apesar de permitida, ainda causa certo desconforto e náusea, é como receber, sem esperar, uma pancada na consciência que deixará seqüelas até o fim da vida.


Trecho de Trópico de Câncer:

... o monstruoso não é que homens tenham criado rosas com este monte de esterco, mas que, por uma ou outra razão, tenha desejado rosas. Por uma ou outra razão o homem procura o milagre e, para realizá-lo, chafurda no sangue. Corrompe-se com idéias, reduz-se a uma sombra, se por um único segundo de sua vida fecha os olhos à hediondez da realidade. Tudo se suporta, desgraça, humilhação, pobreza, guerra, crime, ennui – na crença de que, da noite para o dia, algo acontecerá, um milagre, que tornará a vida tolerável. E durante todo o tempo um mediador está correndo lá dentro e não há mão que possa alcançá-lo lá e fazê-lo parar. Durante todo o tempo alguém está comendo o pão da vida e bebendo o vinho, algum padre sujo e gordo como uma barata que se esconde na adega para emborcá-lo, enquanto lá em cima, na luz da rua, uma hóstia fantástica toca os lábios, e o sangue é pálido como a água. E do interminável tormento e miséria, nenhum milagre surge, nenhum vestígio microscópico sequer de alívio. Só idéias, pálidas, e atenuadas idéias que precisam ser engordadas por carnificina; idéias que saem como bílis, como as entranhas de um porco quando se abre a carcaça.
                E assim penso que milagre não seria se este milagre que o homem espera eternamente, nada mais viesse a ser do que aqueles dois enormes troços que o fiel discípulo lançou no bidê. Se no último momento, quando a mesa do banquete estiver arrumada e os címbalos soarem, aparecer de repente e absolutamente sem aviso, nada mais nada menos que dois enormes montes de bosta. Isso, creio eu, seria mais milagroso do que tudo quanto o homem tem esperado. Seria milagroso porque seria o não sonhado. Seria mais milagroso do que o sonho mais louco porque qualquer um podia imaginar a possibilidade, mas ninguém jamais a imaginou, e provavelmente ninguém jamais a imaginará.




2 comentários:

  1. eu gostei muito do seu blog. Esse livro como vc msm disse é uma bomba, mas ao mesmo tempo ele desprende vc de suas próprias amarras. Abraço.

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