quinta-feira, 28 de abril de 2011

O NOSSO DOM QUIXOTE

                O Cavaleiro da Triste Figura, Dom Quixote de La Mancha, tem lugar eternizado no imaginário popular. Mesmo para quem jamais leu a obra ou sequer tem noção de literatura, o nome do cavaleiro andante de Cervantes é familiar, assim como também é familiar a sua silhueta magra, esguia, sobre um cavalo quase transparente. É como se desde 1605 todos nascêssemos já com a idéia inata daquele que cruzou terras para vencer gigantes moinhos de vento e poderosos exércitos de ovelhas. É o Dom Quixote de Cervantes, que já tomamos a liberdade de chamar "nosso Dom Quixote".


"Embora, Dom Quixote, mil loucuras
O cérebro vos tenham transtornado,
Jamais sereis por outrem difamado
Como homem de obras vis e ações impuras.

Por vós, vossas façanhas darão juras,
Pois tortos desfazendo haveis andando,
Sendo vezes sem conta esbordoado
Por vilões de terríveis cataduras.

Porém, se Dulcinéia, em gesto tolo,
Desaguisado contra vós comete,
Nem mostra a vossas penas bom talante,

Em que desmando, sirva de consolo
Que, alcovitar, a Sancho não compete
Que ela foi dura; e vós, errado amante."
       
   
               O Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de La Mancha é uma novela dotada de elevado bom humor que satiriza os romances de cavalaria tão bem difundidos na Europa medieval. Magnum opus de Miguel de Cervantes, por muitos considerada o ápice da literatura espanhola e mundial, a obra, lançada em dois volumes, o primeiro em 1605 e o segundo em 1615, é composta por 126 capítulos que narram a saga do ilustre cavaleiro por terras espanholas. Em 2002 um júri reconheceu Dom Quixote como a maior obra de ficção de todos os tempos.

As ideias de Dom Quixote - G. Doré


Os romances de cavalaria - G D
               
                 O engenhoso fidalgo de Cervantes, natural das um vilarejo da Mancha, “era de compleição rija, seco de carnes, chupado de rosto” e já beirava os cinqüenta anos. Nos momentos de ócio, que eram maioria em sua vida, entregava-se a leitura de novelas de cavalaria e embebedava-se com as histórias de Amadis de Gaula e tantos outros heróis. E de tanto chafurdar nessas histórias, acabou por confundir a ficção com a realidade, perdeu o juízo e decidiu tornar-se também um Cavaleiro Andante, a andar pelo mundo protegendo os fracos e oprimidos, desfazendo tortos, zelando pela ordem e justiça, e para isso adotou o nome de Dom Quixote, o cavaleiro da Mancha.


          Entretanto, apenas um nome e uma idéia não eram suficientes. Como todos os outros, era necessário, como dizia o protocolo, um belo cavalo, um fiel escudeiro e uma amada por quem chorasse nas noites escuras e por quem vivesse e ganhasse forças nas batalhas mais difíceis. Foi assim que o rocim dos trabalhos de campo se tornou Rocinante, o mais sofrido dos cavalos. Uma moça da região da Mancha ganhou no imaginário do nosso herói o nome de Dulcinéia del Toboso, a amada. E foi com um discurso convincente como só os loucos sabem dar que Dom Quixote convence Sancho Pança a seguir com ele nas peripécias do destino, com a promessa de que quando a fama e a glória e o reconhecimento se apresentarem ao amo, o escudeiro ganharia uma ilha para governar. Com o time completo, começa a aventura quixotesca.

DIÁLOGO ENTRE BABIECA E ROCINANTE 
B. – Por que estais,  Rocinante, assim delgado?
R. – Porque nunca se come, se trabalha.
B. – Mas o que é da cevada, o que é da palha?
R. – Não me deixam meu amo um só bocado.
B. – Cuidai, senhor, não ser de um bom criado se ao amo a língua de asno só achincalha.
R. – Asno se é desde o berço até a mortalha. Não credes? Contemplai-o enamorado.
B. – Será tolice amar?
R. – Não é sensato.
B. – Metafísico estais.
R. – É que não como.
B. – Falai com o escudeiro.
R. – Achais que adiante?
 Como hei de me queixar de tão mau trato, se o amo e o escudeiro, aliás mordomo, são ambos mais rocins que o Rocinante?

                Nessas aventuras, nesse mundo de faz de contas onde bandidos e encantadores o perseguem e o confundem com mágicas do mal, Dom Quixote se apossa de estalagens confundindo-as com castelos, salva um lavrador que apanha de açoite do patrão ameaçando-o, e, óbvio, assim que vira as costas, a surra sobre o lavrador é dobrada; ataca moinhos de ventos que confunde com gigantes, rebanhos de ovelhas que pareciam ser exércitos, e apanha cruelmente, em diversas ocasiões, por conta de seus devaneios e atrevimentos. Para todos os fracassos, Dom Quixote carrega seu fiel escudeiro Sancho Pança, que a cada surra cogita abandonar tudo e retomar sua vida pacata, dono de memoráveis frases, como: “Meu amo, não agüento mais levar bordoada”.

                Muito se é discutido sobre a representação de Dom Quixote e Sancho Pança no mundo real. O cavaleiro é encarado como a visão do mundo ideal, a máxima liberdade, o agir por impulso e vontade, enquanto que o escudeiro é o símbolo da realidade, os pés no chão, embora siga fielmente o cavaleiro sonhador. Em uma outra representação nós podemos perceber que uma idéia, por mais descabida que seja, sempre consegue seguidores. Em contrapartida, o final do livro mostra que todo sonho, toda idéia, toda aventura, ainda que grandiosa, ainda que muito bem sonhada, chega ao seu fim e acaba sendo vencida pela vida. Dom Quixote retoma o juízo e se envergonha de seus feitos, repudiando até mesmo os seus tão queridos romances de cavalaria, e apesar de toda a ironia, de todo o humor que é dotada a obra, é dramático o gosto que fica em seu fim


Dom Quixote em seu leito de morte - G. Doré

O MONICONGO,
ACADÊMICO DA ARGAMASALHA,
À SEPULTURA DE DOM QUIXOTE.


E P I T Á F I O

O desmiolado audaz que ornou a Mancha
De mais presas que o grão Jasão de Greta;
O juízo impulsionado pela veleta
Aguda, quando fora melhor acha;

O braço, que sua força tanto ensancha,
Fez vir desde Catai até Gaeta
A musa mais horrenda e mais discreta
Que fez versos gravar em brônzea prancha;

O que deixou ao longo os Amadises,
E aos Galaores tanto suplantou,
Seja quanto ao amor ou bizarria;

 O que calou a voz dos Belianises
E, sobre o Rocinante, errante andou,
Descansa em paz sob essa lousa fria.


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