domingo, 22 de maio de 2011

DO ALTO DOS MONTES



de FRIEDRICH NIETZSCHE
Oh! Meio dia da vida! Época solene!
Oh! jardim de estio!
Beatitude inquieta da ansiedade na espera:
espero meus amigos, noite e dia,
onde estais, amigos meus?
Vinde! É tempo, é tempo!

Nã0 é por vós que o gelo cinzento
hoje se adorna com rosas?
A vós procura o rio,
Suspensos nos céus ventos e nuvens se alevantam
para observar vossa chegada
competindo com o mais sublime vôo dos pássaros.

No meu santuário coloquei a mesa:
Quem vive mais próximo das estrelas
e das horríveis profundezas do abismo?
Que reino mais extenso que o meu?
E do mel, daquele que é meu, que sentiu seu fino aroma?

Aqui estais, finalmente, meus amigos!
Ai! não é a mim que procurais?
Hesitais, mostrais surpresa?
Insultai-me é melhor! Eu não sou mais eu?
Mudei de mão, de rosto, de andar?
O que eu era, amigos, acaso não mais sou?

Tornei-me, talvez, outro?
Estranho a mim mesmo? De mim mesmo, fugido?
Lutador que muitas vezes venceu a si mesmo?
Que muitas vezes lutou contra a própria força,
ferido, paralisado pelas vitórias contra si mesmo?

Porventura não procurei os mais ásperos ventos
e aprendi a viver onde ninguém habita,
nos desertos onde impera o urso polar?
Não esqueci a Deus e ao homem, blasfêmias e orações?
Tornei-me um fantasma das geleiras.

Oh! meus velhos amigos, vossos rostos
empalidecem de imediato,
transtornados de ternura e espanto!
Andai, sem rancor! Não podeis demorar aqui!
Não é para vós este pais de geleiras e rochas!
Aqui é preciso ser caçador e antílope!

Converti-me em caçador cruel. Vede meu arco:
a tensão de sua corda!
Apenas o mais forte poderá arremessar tal dardo.
Mas não há nenhuma seta mortal como esta.
Afastai-vos, se tendes amor à vossa vida!

Fugis de mim!? Oh, coração, quanto sofreste!
E entretanto, tua esperança ainda se mantém firme!
Abre tuas portas a novos amigos,
renuncia aos antigos e às lembranças!
Fostes jovem? - Pois agora és mais e com mais brio.

Quem pode decifrar os signos apagados,
do laço que une com ua mesma esperança?
Signos que em outros tempos escreveu o amor,
que luzem como velho pergaminho queimado
que se teme tocar, como ele. Queimado e enegrecido!

Basta de amigos! Como chamá-los?
Fantasmas de amigos! Que de noite,
tentam ainda meu coração e minha janela
e me olham sussurrando:
Somos nós!
Oh! Ressequidas palavras, um dia fragrantes como rosas!

Sonhos juvenis tão cheios de ilusão,
aos quais buscava no impulso de minhalma,
agora os vejo envelhecidos!
Apenas os que sabem mudar são os de minha linhagem.

Oh! Meio dia da vida! Oh! segunda juventude!
Oh! jardim de estio!
Beatitude inquieta na ansiedade da espera!
Os amigos esperam, dia e noite, os novos amigos.
Vinde! É tempo! É tempo!

O hino antigo cessou de soar,
O doce grito do desejo expira em meus lábios.
Na hora fatídica apareceu um encantador,
o amigo do pleno meio-dia.
Não, não me pergunteis quem é;
ao meio-dia, o que era um,
dividiu-se em dois.

Celebremos, seguros de ua mesma vitória,
a festa das festas!
Zaratustra está alai, o amigo,
o hóspede dos hóspedes!
O mundo ri, o odioso véu cai,
E eis que a luz se casa Com a misteriosa,
subjugadora Noite. 

sexta-feira, 20 de maio de 2011

A ORIGEM DO MUNDO CENSURADA

        
         Recentemente o escritor cubano Pedro Juan Gutiérrez disse em São Paulo que “O politicamente correto está acabando com o mundo”, e isso fica muito nítido quando temos que tomar cuidados extremos para não esbarrar nas fronteiras éticas com comentários que muitas vezes são inocentes, mas podem ser mal interpretados. Esse politicamente correto, esse puritanismo desmedido e não raro falso, se chegará a acabar com o mundo, não sabemos, mas que ele ataca freneticamente a arte, isso é fato.

                O famoso quadro (no entanto quase desconhecido do público) “A ORIGEM DO MUNDO, de Gustav Courbet, data de 1886 e representa de forma explícita, realista e anatômica o sexo de uma mulher, e desde a sua criação vem sofrendo retaliações e censuras, o que, pela época de que estamos falando, já era de se esperar. Mas a censura é um demônio que já deveria ter sido exorcizado há muito tempo, assim como a evolução do pensamento é algo que deveria estar sempre presente na história da humanidade. Triste quando notamos que todas essas belas ideias são apenas ideias.

                Em 2009 a Polícia de Segurança Pública da tradicional cidade de Braga, ao norte de Portugal, em uma feira literária, confiscou os livros de arte que continham a obra na capa, acusando-a pornográfica e indigna de exposição livre. Perante o alvoroço e a polêmica sobre o caso, dias após a apreensão, os mesmos foram devolvidos e a seguinte nota emitida:

"Tendo-se verificado que o livro reproduz uma obra de arte e não havendo fundamento para a respectiva apreensão, foi determinado o envio de uma comunicação, ao Ministério Público, para considerar sem efeito o respectivo auto"

Agora, mais recentemente, chegou a vez da toda liberal internet pisar sobre a cultura e a liberdade de expressão. Dois usuários do facebook, entre eles o artista dinamarquês Frode Steinicke, tiveram as suas contas excluídas após apresentarem no “mural” o quadro de Courbet sob a mesma alegação, pornografia.

É uma censura absurda, especialmente porque a imagem desta famosa pintura, que faz parte da herança cultural francesa, destinava-se a ilustrar os meus comentários sobre uma emissão da DR2, o segundo canal da televisão pública”. Palavras do artista

Uma obra criada em 1886 que no século XXI ainda sofre preconceitos e censura é, no mínimo, perturbador. Será que estamos realmente caminhando para frente? E se estamos, qual a largura desses passos? Por vezes chego a pensar que estamos andando na contramão, bloqueando toda e qualquer cultura que foge ao padrão politicamente correto de ser.

Mas e então, somos nós, assim como Corbet, vulgares e pornográficos, ou o mundo puritano possui uma outra origem?


Danilo del Monte


* Le Originele du Monde fez parte da coleção particular de Jacques Lacan, que manteve o quadro escondido sob uma outra pintura de madeira. O Estado francês aceitou a obra como doação após a morte da viúva de Lacan, em 1994, e finalmente em 1995 foi pela primeira vez exposta ao público no museu d'Orsay, onde permanece.

Auto-retrato de Gustave Courbet




8 de Feveiro de 2012
Reportagem retirada do site Catraca Livre sobre o quadro:


Especialista diz desvendar o rosto da vulva mais famosa da história das artes



Especialista em pintura, Fernier Jean-Jacques, declara ter descoberto a identidade da modelo que posou para o quadro “A Origem do Mundo”, de Gustave Courbet, em 1865. Até hoje a tela gera grande polêmica por trazer uma pintura realista da genitália feminina, sendo considerada a obra mais ousada da história da pintura.
A revelação foi publicada essa semana na revista “Paris-Match”. Fernier afirma que se trata de Joanna Hiffernan, a modelo irlandesa de James Whistler. O rosto da modelo foi encontrado em outra tela. Veja a ilustração que une os dois quadros:

União das duas telas feita pelo perito Fernier Jean-Jacques


link da matéria: http://catracalivre.folha.uol.com.br/2013/02/364366/

quarta-feira, 18 de maio de 2011

PLENILÚNIO




Não importa o nosso nível de amargura.
Não importa quantos séculos passaram.
Quantos ainda passarão, não importa.
Sempre que a senhora noite escura
Lança ao breu a bela jóia rara,
Clara como as lágrimas na face,
Os livros e os jornais não mais importam.

Não importa o quanto
Ao longo desses anos
Derrubamos pela estrada afora.
Não importa o quanto acumulamos
Em desprezo ou mediocridade.
Altaneira, pagã, absoluta,
Toda luta travada logo é esquecida.
Quando os olhos cravam sobre ela,
Discursos, armas e bandeiras não importam.

Dias vencidos em horas.
Horas vencidas em minutos.
Sonhos diminutos e ainda tanto por fazer...
Nada disso importa... não quando
A cheia e sempre bela jóia clara,
Rara como as nossas atenções a ela,
Nos fita tão soberba e tão carente.
Tão hipnótica... tão desesperada...
Tão convincente ao dizer que nada importa.

Passem quantos séculos passarem,
Quando a lua cheia aparece, nada mais importa.


Danilo del Monte

imagem: Fotografia de Mariana Altivo

domingo, 15 de maio de 2011

DE UM MINUETO

Boca vermelho sangue
E olhos de um verde mar,
E tudo é tão postiço
Quanto o sorriso
De iluminar.

Todo dia um ritual
Sem o qual não pode passar,
Esconde-se em qualquer canto
E solta o pranto
Até soluçar.

Andando por qualquer rua
A lua vai lhe mostrar
Que quando está descontente
Convidada a gente
A lhe admirar.

Mas se a lua se mostra bela
A esquina a faz lembrar
Que a vida não é bonita,
Que ela é sofrida
E faz machucar.

Cigarro pra fazer charme
E gim para agüentar.
Se a rotina se faz difícil
É parte do ofício
Dissimular.

Encosta e mostra as pernas
Que servem para abraçar.
O corpo ali aguarda
E a mente guarda
O desesperar.

Na vista há um casal
Que na praça a faz invejar,
O seu amante de hoje
Amanhã foge
Pra não voltar.

E sozinha se indaga:
Quando é que vai acabar?
Mas quando a noite finda
É sempre bem vinda
A luz em seu olhar.

Olhos vermelho sangue
E boca um verde mar,
E tudo é tão tristonho
Como um bom sonho
Ao acordar.

Danilo del Monte


sexta-feira, 13 de maio de 2011

IX - A ÓPERA

*Capítulo de Dom  Casmurro*
MACHADO DE ASSIS
          
         Já não tinha voz, mas teimava em dizer que a tinha. "O desuso é que me faz mal", acrescentava. Sempre que uma companhia nova chegava da Europa, ia ao empresário e expunha-lhe todas as injustiças da terra e do céu; o empresário cometia mais uma, e ele saía a bradar contra a iniqüidade. Trazia ainda os bigodes dos seus papéis. Quando andava, apesar de velho, parecia cortejar uma princesa de Babilônia. As vezes, cantarolava, sem abrir a boca, algum trecho ainda mais idoso que ele ou tanto - vozes assim abafadas são sempre possíveis. Vinha aqui jantar comigo algumas vezes. Uma noite, depois de muito Chianti, repetiu-me a definição do costume, e como eu lhe dissesse que a vida tanto podia ser uma ópera, como uma viagem de mar ou uma batalha, abanou a cabeça e replicou: 

          --A vida é uma ópera e uma grande ópera. O tenor e o barítono lutam pelo soprano, em presença do baixo e dos comprimirás, quando não são o soprano e o contralto que lutam pelo tenor, em presença do mesmo baixo e dos mesmos comprimirás. Há coros a numerosos, muitos bailados, e a orquestração é excelente... 

          --Mas, meu caro Marcolini... 

          --Quê... 

         E depois, de beber um gole de licor, pousou o cálix, e expôs-me a história da criação, com palavras que vou resumir. 

         Deus é o poeta. A música é de Satanás, jovem maestro de muito futuro, que aprendeu no conservatório do céu. Rival de Miguel, Raiael e Gabriel, não tolerava a precedência que eles tinham na distribuição dos prêmios. Pode ser também que a música em demasia doce e mística daqueles outros condiscípulos fosse aborrecível ao seu gênio essencialmente trágico. Tramou uma rebelião que foi descoberta a tempo, e ele expulso do conservatório. Tudo se teria passa do sem mais nada, se Deus não houvesse escrito um libreto de ópera do qual abrira mão, por entender que tal gênero de recreio era impróprio da sua eternidade. Satanás levou o manuscrito consigo para o inferno. Com o fim de mostrar que valia mais que os outros, e acaso para reconciliar-se com o céu,--compôs a partitura, e logo que a acabou foi levá-la ao Padre Eterno. 

          --Senhor, não desaprendi as lições recebidas, disse-lhe. Aqui tendes a partitura, escutai-a emendai-a, fazei-a executar, e se a achardes digna das alturas, admiti-me com ela a vossos pés... 

          --Não, retorquiu o Senhor, não quero ouvir nada. 

          --Mas, Senhor... 

         --Nada! nada! 

         Satanás suplicou ainda, sem melhor fortuna, até que Deus, cansado e cheio de misericórdia, consentiu em que a ópera fosse executada, mas fora do céu. Criou um teatro especial, este planeta, e inventou uma companhia inteira, com todas as partes, primárias e comprimárias, coros e bailarinos. 

         --Ouvi agora alguns ensaios! 

         --Não, não quero saber de ensaios. Basta-me haver composto o libreto; estou pronto a dividir contigo os direitos de autor. 

         Foi talvez um mal esta recusa; dela resultaram alguns desconcertos que a audiência prévia e a colaboração amiga teriam evitado com efeito, há lugares em que o verso vai para a direita e a música, para a esquerda. Não falta quem diga que nisso mesmo está a além da composição, fugindo à monotonia, e assim explicam o terceto do Aden, a ária de Abel, os coros da guilhotina e da escravidão. Não é raro que os mesmos lances se reproduzam, sem razão suficiente. Certos motivos cansam à força de repetição. Também há obscuridades; o maestro abusa das massas corais, encobrindo muita vez o sentido por um modo confuso. As partes orquestrais são aliás tratadas com grande perícia. Tal é a opinião dos imparciais. 

         Os amigos do maestro querem que dificilmente se possa acha obra tão bem acabada. Um ou outro admite certas rudezas e tais ou quais lacunas, mas com o andar da ópera é provável que estas sejam preenchidas ou explicadas, e aquelas desapareçam inteiramente, não se negando o maestro a emendar a obra onde achar que não responde de todo ao pensamento sublime do poeta. Já não dizem c mesmo os amigos deste. Juram que o libreto foi sacrificado, que a partitura corrompeu o sentido da letra, e, posto seja bonita em alguns lugares, e trabalhada com arte em outros, é absolutamente diversa e até contrária ao drama. O grotesco, por exemplo, não está no texto do poeta; é uma excrescência para imitar as Mulheres Patuscas de Windsor. Este ponto é contestado pelos satanistas com alguma aparência de razão. Dizem eles que, ao tempo em que o jovem Satanás compôs a grande ópera, nem essa farsa nem Shakespeare eram nascidos. Chegam a afirmar que o poeta inglês não teve outro gênio senão transcrever a letra da ópera, com tal arte e fidelidade, que parece ele próprio o autor da composição; mas, evidentemente, é um plagiário. 

         --Esta peça, concluiu o velho tenor, durará enquanto durar o teatro, não se podendo calcular em que tempo será ele demolido por utilidade astronômica. O êxito é crescente. Poeta e músico recebem pontualmente os seus direitos autorais, que não são os mesmos, porque a regra da divisão é aquilo da Escritura: "Muitos são os chamados, poucos ao escolhidos". Deus recebe eu ouro, Satanás em papel. 

         --Tem graça... 

        --Graça? bradou ele com fúria; mas aquietou-se logo, e replicou: Caro Santiago, eu não tenho graça, eu tenho horror à graça. Isto que digo é a verdade pura e última. Um dia. quando todos os livros forem queimados por inúteis, há de haver algum, pode ser que tenor, e talvez italiano, que ensine esta verdade aos homens. Tudo é música, meu amigo. No princípio era o dó, e do dó fez-se ré, etc. Este cálix (e enchia-o novamente), este cálix é um breve estribilho. Não se ouve? Também não se ouve o pau nem a pedra, mas tudo cabe na mesma ópera...








domingo, 8 de maio de 2011

AS GERAÇÕES

Não sei se é o tempo que anda
Ou a gente que se planta no concreto.
Seria melhor se a gente caminhasse com ele
Para efeito de reduzir o impacto? Talvez correr?
E se o encarássemos, autoritários, seguros
E sem medo nem receio gritássemos:
“Daqui pra frente eu vou também.”?

Não sei se corre o tempo apenas
Ou se, enquanto ele corre, a gente anda pra trás.
Faria alguma diferença se parássemos no hora e no lugar,
Se cruzássemos os braços, batêssemos os pés
E de alto e bom som, exclamássemos:
“Não recuo mais um passo.”?

Seja como for,
Ele vem e passa e faz as gerações passarem por mim
Como os transeuntes passam pela avenida central
Sem notar as obras de arte na calçada.
Da maneira como for,
Elas me atravessam como um raio-X
E deixam transparecer em mim todas as falhas
Que fotografias e frases não deixaram sair.

As gerações passam e me humilham,
Me transpassam sem o mínimo respeito.
Nunca sequer pararam para tirar o chapéu.
Nunca sequer manifestaram o desejo de ajudar.
Nunca sequer demonstraram um mínimo de ressentimento.

Elas só passam.
Tempo, tempo, tempo...
Tempo e todas as gerações que me cortam,
Será que não percebem o que eu percebo?
Então, seja como for, seja!
Mas se é pra me rasgar que seja ao menos
Com o meu conhecimento.

Aí vem, posso sentir.
Enquanto as letras se posicionam,
As palavras se montam e os versos se formam,
No horizonte vem surgindo a próxima geração que passará por mim.



Danilo del Monte