sexta-feira, 3 de junho de 2011

VIII - RAZÃO CONTRA SANDICE

          *Capítulo de "Memórias Póstumas de Brás Cubas"*
MACHADO DE ASSIS


         Já o leitor compreendeu que era a Razão que voltava à casa, e convidava a Sandice a sair, clamando, e com melhor jus, as palavras de Tartufo:
La maison est à moi, c'est à vous d'en sortir.
          Mas é sestro antigo da Sandice criar amor às casas alheias, de modo que, apenas senhora de uma, dificilmente lha farão despejar. É sestro; não se tira daí; há muito que lhe calejou a vergonha. Agora, se advertirmos no imenso número de casas que ocupa, umas de vez, outras durante as suas estações calmosas, concluiremos que esta amável peregrina é o terror dos proprietários. No nosso caso, houve quase um distúrbio à porta do meu cérebro, porque a adventícia não queria entregar a casa, e a dona não cedia da intenção de tomar o que era seu. Afinal, já a Sandice se contentava com um cantinho no sótão.
          
           -- Não, senhora, replicou a Razão, estou cansada de lhe ceder sótãos, cansada e experimentada, o que você quer é passar mansamente do sótão à sala de jantar, daí à de visitas e ao resto.
          
          -- Está bem, deixe-me ficar algum tempo mais, estou na pista de um mistério...
          
          -- Que mistério?
         
          -- De dous, emendou a Sandice; o da vida e o da morte; peço-lhe só uns dez minutos.
         
         A Razão pôs-se a rir.
         
          -- Hás de ser sempre a mesma cousa... sempre a mesma cousa... sempre a mesma cousa...

        E, dizendo isto, travou-lhe dos pulsos e arrastou-a para fora; depois entrou e fechou-se. A Sandice ainda gemeu algumas súplicas, grunhiu algumas zangas; mas desenganou-se depressa, deitou a língua de fora, em ar de surriada, e foi andando...






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