sexta-feira, 15 de julho de 2011

POR QUE EM NOME DE DEUS?

Leonardo da Vinci - Homem Vitruviano
     Hoje, no meio de uma praça pública, uma senhora notou que eu não era o mais feliz dos homens e, em nome de deus, disse-me algumas palavras de esperança. Saí atordoado. Fiquei pensando, horas depois, no costume dessa gente de tentar converter tudo o que existe na Terra em uma oferenda aos céus. Será que não percebem que o amor que se dedica a deus é uma oferenda, assim como um cordeiro sacrificado no altar, e que este cordeiro seria mais útil se, em vez de oferecido a deus, fosse oferecido a alguém que tem fome de verdade?

        
“Não há no mundo amor e bondade bastantes para que ainda possamos dá-los a seres imaginários” – NIETZSCHE


         
        Acima de tudo, dizem, está deus. Mas por quê? Penso em como vamos celebrar, algum dia, justo triunfo de benevolência, de amor pela própria espécie, se toda ideia que talvez torne isto possível é sempre atribuída a deus. Deus nunca passou de uma palavra. E que tamanha covardia a nossa jogar toda a culpa e todo o mérito sobre essa palavra. Se há bondade, que seja dada ao homem mais próximo. Se há respeito, que seja entregue a quem está ao lado. Se há amor, que se dedique à humanidade. Deus não tem o que fazer com tudo isso.

          Após dois mil anos de vergonhosa história, de sangrenta submissão a uma palavra pedante, meios e fins injustificáveis justificaram-se reciprocamente. Tudo o que houve de podre, de fedorento, de nocivo na história humana teve por trás, ainda que discretamente, uma palavra desprovida de ideia. Hoje, depois de um passado vergonhoso, estes mesmos meios, estes mesmos fins, esta mesma pedante palavra instala-se em cada esquina para apelar à bondade que talvez exista dentro dos homens. Será que essa palavra ainda possui algum sentido?

          Disse Miller que em nome do milagre que está por vir tudo se suporta, dor, desgraça, fome, humilhação... Tudo na esperança do milagre que não tardará, do milagre que vai tirar de sobre o rosto a bota pesada e suja de dois milênios... Mas o milagre não vem e continuamos aguentando. Da forma como nos ensinam a pensar, o milagre jamais acontecerá. O milagre, e aqui digo eu, é justamente a percepção de que não há milagre nenhum por vir, é a percepção de que o amor entregue a deus foi um desperdício.

          Algo precisa ser feito, valores mudados, criados uns, destruídos outros, mas por que não em nome de nós mesmos? Por que não pedir uma dose de preocupação com a humanidade em nome da própria humanidade, que é quem deveras está necessitada? Por que não em nome de uma civilização um pouco menos hipócrita, um pouco menos estúpida, um pouco menos pedante, um pouco menos selvagem e um pouco mais segura de si?

          O nome de deus (ou a palavra) anda muito carregado de sujeira para que possamos usá-lo como nossa salvação. Se existe alguma chance de lutar contra a própria terrível natureza, façamos em nosso próprio nome. O bem para quem está ao lado, e não no além; o bem pelo prazer, e não pelo medo; o bem iniciado por nós e entregue a nós. Um cordeiro queimado no altar não é comido por ninguém


Ouça, abade. Toda a diferença é essa. Eu quero que o rapaz seja virtuoso por amor da virtude e honrado por amor da honra; mas não por medo às caldeiras de Pêro Botelho, nem com o engodo de ir para o reino do céu.” (Eça de Queiros – Os Maias)

Danilo del Monte

Quadro de Tarsila do Amaral 

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