segunda-feira, 19 de setembro de 2011

BALZAC SOBRE A NULIDADE DO HOMEM

          *Trecho de
A MULHER DE TRINTA ANOS




          Não se encontram muitos homens cuja profunda nulidade é um segredo para a maior parte das pessoas que os conhecem? Uma posição elevada, um nascimento ilustre, atribuições importantes, certo verniz de polidez, grande reserva no procedimento ou prestígio da fortuna são para eles como guardas que impedem os críticos de penetrar a sua existência íntima. Essa gente se parece com os reis, cuja verdadeira estatura, caráter e costumes nunca podem ser bem conhecidos nem justamente apreciados, porque são vistos de muito longe ou de muito perto. Essas personagens de mérito factício interrogam em vez de falar, possuem a arte de dispor os outros em cena para evitar posar diante deles; depois, com grande habilidade, movimentam cada um pelo fio das suas paixões ou dos seus interesses e zombam assim de homens que lhes são realmente superiores, fazem deles fantoches e julgam-nos pequenos por que os rebaixaram até as suas pessoas. Obtêm então o triunfo natural de um pensamento mesquinho, porém fixo, sobre a mobilidade dos grandes pensamentos. De sorte que, para apreciar esses cérebros ocos e pesar-lhes os valores negativos, o observador deve possuir um espírito mais sutil que superior, mais paciência que alcance de vista, mais finura e tato que elevação e grandeza nas idéias. Não obstante, por maior habilidade que empreguem esses usurpadores em defender seus pontos fracos, é-lhes bem difícil enganar as esposas, as mães, os filhos ou o amigo da casa. Esses, porém, quase sempre lhes guardam o segredo sobre um assunto que de algum modo toca à honra comum, e muitas vezes até os ajudam a impor-se à sociedade. 


          Se, graças a essas conspirações domésticas, muitos tolos passam por homens superiores, compensam o número de homens superiores que passam por tolos, de sorte que o estado social tem sempre a mesma massa de capacidades aparentes. Pensem agora no papel que deve representar uma mulher de espírito e de sentimento na presença de um marido desse gênero; não se conseguem perceber existências cheias de dores e dedicação cujos corações ternos e delicados coisa alguma neste mundo poderia recompensar. Encontrando-se uma mulher forte nessa horrível situação, sairá dela por meio de um crime, como fez Catarina II, não obstante denominada A Grande. Mas, como nem todas as mulheres se encontram sentadas num trono, sofrem quase todas as desgraças domésticas, que, por serem obscuras, não são menos terríveis. Aquelas que procuram neste mundo consolações imediatas aos seus males conseguem, apenas substituí-los por outros, quando querem conservar-se fiéis aos seus deveres, ou cometem faltas, se violam as leis em proveito dos seus prazeres. Estas reflexões são inteiramente aplicáveis à história secreta de Júlia. 


Honoré de Balzac


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quinta-feira, 15 de setembro de 2011

FASCINAÇÕES, NAPOLEÃO E DEVANEIOS PARTICULARES



*Texto de TIAGO SILVA
colunista do site Gosto de Ler

Altivez, coragem, estrategismo, frieza, inteligência. São adjetivos de dar inveja a qualquer ser que um dia pretenda ser um conquistador. Agora, se existiu um homem na História em que essas qualidades melhor o distinguem, esse regozijado homem é Napoleão Bonaparte.


Retrato de Napoleão Bonaparte em Campanha


Imperador da França entre o período 1804 - 1814 (cinco anos antes, fazia parte do Consulado, período em que preparou o terreno para seu mandato), esse monarca iluminista, reconhecido por ascender após a luta contra o Absolutismo na Revolução Francesa, trouxe à sua nação o chefe que ela necessitava; uma espada que conciliasse a ordem e a paz, juntamente com um método governamental que beneficiasse aquele povo que já fora muito prejudicado com os altos impostos cobrados pelos Luíses que por lá mandaram.
Essa célebre personalidade, que não cessava em sua mania de domínio em conquistar a Europa inteira, já influenciou grandes personagens literários que compõem nossa prateleira bibliotecária. Se for contar nos dedos, do ano da morte de Napoleão – que foi derrotado por impor à Inglaterra que não se opusesse aos seus planos de expandir o território francês – em 1821 até os dias de hoje, são pouco menos que dois séculos. Mas, como progenitor de fascinantes personalidades que compõem a literatura mundial, seu legado altamente influxo pode ter a liberdade em dar um breque no final do século XIX. Justamente nesse ínterim, o francês Marie-Henri Beyle, de pseudônimo Stendhal e Fiódor Dostoievski, em diferentes datas, escreviam suas obras-primas O Vermelho e o Negro e Crime e Castigo, respectivamente.´

Stendhal
Julien Sorel, personagem central do romance de Stendhal, é um rapaz solitário, que teve uma infância marcada graças ao pai que sempre o destratou. Por ter decorado todos os trechos da Bíblia em latim, pretendia formar-se em teologia. Até que a oportunidade de trabalhar como criado na casa do prefeito de Verrières o fez conhecer a volúpia da paixão da Senhora de Rênal, a primeira-dama da cidade.

No decorrer do romance, migra da pequena cidade rumo à Paris, onde percebe que toda a veneração ingênua dos habitantes de cidadezinhas aos pólos industriais nada mais são que mera ilusão. Ingressa no curso de teologia em um local escondido da cidade, ministrado por um ganancioso abade. É lá que Sorel tem conhecimento das falcatruas que rondam os bispados e eclesiásticos, que nada mais querem senão aliarem-se a sociedade nobre para conseguirem, muitas vezes por meios inescrupulosos, aquilo que desejam.
Vale ressaltar que os grandes alvos de crítica de Stendhal foram a Igreja e a nobreza, que repudiavam e denominavam como pilhéria o povo de “classe baixa”, muito bem representado por Julien, que tinha grande sonho de se tornar um burguês e fazer uso de sua futura austeridade para castigar aqueles que o fizeram sofrer pérfidamente.
Tudo bem, o livro tem uma estória atrativa, mas, qual a relação de um mero cidadão negligenciado pela sociedade com Napoleão, o Imperador? Julien Sorel tem Napoleão como um mestre. É nele em que o personagem pensa quando consegue conquistar um grande êxito em sua vida, como roubar o coração da Senhora de Rênal e apimentar a paixão da Senhorita de La Mole, filha do marquês, que o admira bastante por ocupar um cargo de confiança em seu palacete e por obedecer fielmente as tarefas que lhe são ordenadas.
Por ter tido uma infância difícil e nunca ter tido a compreensão do pai, Julien detestava a população que o cercava e só tinha amizade com um vendedor e um velho pároco em sua cidade. Seu único desejo, que trouxe para si a infelicidade, era ter um título de nobre e um dia tomar benefício da autoridade que o dinheiro poderia lhe dar. (Era acanhado e retraído, já que não teve contato com muitas pessoas em sua vida). Porém, admirava personalidades grandiosas e ‘superiores’ – achava incapaz de um dia ter essas qualidades que tanto venerava.

Só foi se dar conta que a ambição tomou conta de si na mesma ocasião em que seu ídolo fora exilado pelos ingleses para a ilha de Santa Cecília. Julien Sorel, em momentos finais de sua vida, percebeu o declínio que a ganância trouxe para si, tirando definitivamente de seu caminho seus longínquos desejos. O suplício permitiu que sua mente vagasse nos mais diversos e absurdos pensamentos. Em um de seus devaneios, sentiu desonrado por não se assemelhar à forte personalidade de Napoleão.

Explicitando os movimentos que faziam parte de seu tempo, tendo conhecimento do predomínio futuro dos liberais na política francesa e citando Voltaire como uma mente que iluminou o pensamento de sua nação, Stendhal só teve sua complexa obra reconhecida, na época, por genialidades como Balzac e Baudelaire.

Como um par antitético dessa prosa francesa, Rôdion Romanovitch Raskólnikov, o criminoso utópico de Crime e Castigo, enxerga-se grandioso demais por viver em um ínfimo mundo onde predomina a moralidade e a hegemônica filosofia do liberalismo russo.
Dostoievski
Raskólnikov teoriza um universo proselitista. Acredita que os homens só atingirão a supremacia no momento em que se auto-enxergarem e perceberem que a inteligência e fria personalidade ditam sua superioridade. Através de um artigo, defende a existência de seres ‘extraordinários’, que têm a autoridade de mandar, manipular, assassinar e torturar os inferiores seres ‘ordinários’, que devem se submeter às exigências por terem a infelicidade de dominar o que pensam e não possuírem a inteligência e astúcia, características fundamentais na teoria de Raskólnikov para que se atinja o mais alto nível hierárquico nessa escala.

E quem poderia ser o espelho de toda essa conclusão? Mister Napoleão, o célebre personagem que derrubou a monarquia absolutista e instaurou a república, aniquilou o último dos Luíses, passou por cima de todos os contrários ao seu modelo político e conquistou uma legião de fascinados que ultrapassam o limite da moralidade e observam a violência como método decisivo e inevitável para que determinados desejos e excentricidades se sobreponham sobre um modelo vigente.

O ‘herói’ do romance de Dostoievski, alienado por essa instância de superioridade, se viu obrigado a provar sua teoria e mostrar a si mesmo que era ‘extraordinário’. Para tanto, planejou assassinar uma velha ranzinza e, inesperadamente, também teve que apunhalar sua vassala irmã, que assistiu a morte de sua única parenta.

Só que, o que não constava nos seus planos, era o infinito martírio que viria a dominar sua mentalidade nos dias a seguir. Sua consciência vagava nos mais inconscientes sofrimentos, alimentados pela esperteza de um delegado, as pressões de sua mãe e a preocupação com Porfíri Pietróvitch, um nobre cavaleiro que desejava desposar sua irmã para colocar em prática sua superioridade perante os economicamente menos abastados.
Tendo os fatos nadando em corrente contrária a sua situação, Raskólnikov tem a estreita sorte de conhecer uma tímida prostituta, que trabalha para sustentar seu sobrinho, e, ingenuamente, confessa seu crime.

Os psicóticos pensamentos de Raskólnikov jamais deixaram de lado Napoleão Bonaparte, condutor e alimento para todo esse sofrimento mental do personagem. O que é visível perceber, é que o maior apego ao Napoleão não foi por seu reinado na França no início do século XVIII. Foi a sua atitude em levantar a espada, sua coragem em ultrapassar limites, sua ousadia em elevar acima de tudo seus desejos que influenciaram personagens complexos tão reverenciados na literatura universal. Raskólnikov e Julien Sorel, até hoje, são considerados duas das maiores personalidades no universo literário, mesmo após mais de um século de existência. Napoleão, não se pode negar, foi e ainda é um ídolo. Agora, se o seu legado trouxe conseqüências benéficas ou não a uma futura geração não inserida nas fascinantes páginas dos livros, isso já é outra história.






domingo, 11 de setembro de 2011

A PERSONAGEM



É uma via de mão dupla. Uma vida, melhor dizendo, dividida em duas. Não, ainda não; a personagem que fala pode ser a suma de todas as outras que não falam. Sim, porque nem por não ganharem vida nos papéis pode-se dizer que o mundo não está cheio de personagens por aí afora, repletas de dores e delícias, chorando nos cantos, prendendo a respiração ofegante ou rindo de um riso leve e despretensioso. Há personagens escondidas em todas as almas, sem fazer distinção.

                Tudo que falo pode parecer demasiado misterioso, mas que ínfima coisa nesta vida não o é? Se no interior de um jovem poeta pode haver labirintos escuros onde a própria imaginação se atrapalha ao entrar e as paredes a olham dissimuladas e desdenhosas, por que haveria comigo de ser diferente? Eu não faço senão completar a arte, e como a arte nunca se finda, nunca se completa, talvez eu seja nessa vida desnecessária, talvez o que antes se julgara o extravaso da criatividade não passe de uma vaidade típica de um tempo mesquinho e pobre em todos os sentidos. Mas, motivos à parte, cheguei a vida pela necessidade que a vida tinha de me criar, e a isto atribuo o meu andar descompassado e os meus tropeços nas calçadas onde se colocam lixo, mas nem por isso deixo de caminhar, às vezes porque é necessário caminhar, outras apenas para ouvir o barulho do salto batendo no cimento. Cada passo barulhento que dou é a vida de uma personagem diferente que entra em mim, são como apelos por piedade de alguém que sente as pancadas do chicote nas costas, rasgando a carne como a faca rasga o queijo.

                São muitas vidas de mão dupla. Quando paro na contramão da vida para pensar, refletir sobre os meus caminhos, é ímpia a revelação que me diz que nada foi criado para fazer sentido, nem mesmo as casas onde se morar, ou os rios que deságuam no mar, ou as roupas que escondem o corpo. Nada, quando se olha para tudo, tudo perde o sentido, e não há moral, nem ética e nem verdade absoluta que quando encarada olhos nos olhos não possa ser defenestrada. Tudo isso se passa na cabeça variante de uma personagem que sabe que também se passa nas cabeças das outras cem milhões espalhadas por aí.

                Penso naqueles que se foram. Sei que aquele ainda pensa em mim, e que aquele outro já nem se lembra mais quem sou. Lembro do meu rosto umedecido nos momentos e na vergonha desconcertante no dia seguinte. Lembro dos sonhos que tive e que me abandonaram, um a um, a cada fase da minha vida, e penso, quando chegam os novos sonhos, que eles são apenas reciclagens dos antigos, novas faces (ou máscaras) mas exatamente os mesmos sonhos, e exatamente iguais aos outros cem milhões que passeiam pelas noites de quarto em quarto, reviram as bonecas, os vestidos e as maquiagens, se enfeitam, se perfumam antes de entrar no sono de quem se estica sobre o leito.

                Quantas vidas o dramaturgo fez o favor de cruzar? Se nas lacunas das frases de um jovem poeta há mais conteúdo do que todas as peças encenadas sobre o palco, por que não haveria de ter nas minhas palavras alguma percepção válida? Sim, porque as personagens do mundo podem igualar seu autor, como Werther se igualou a Goethe, ambos com capacidade de responder um pelo outro, tão bem que se torna difícil dizer quem é criatura e quem é criador.

Danilo del Monte

foto de Inez van Lamsweerde e Vinoodh Matadin

quarta-feira, 7 de setembro de 2011

ENTRE NÓS


Como se já não bastasse um...
Forte, cego, apertado na garganta.
Como se já não bastasse um
Que dói de dia e sufoca a noite.
Como se já não bastasse um...

Enlaçado mais um dentro do peito.
Forçado um a mais na consciência.
Como se já não bastasse um,
Uma legião vem-me atar pelos braços,
Que se soltos poderiam machucar;
E também pelas pernas,
Que livres sem dúvida fugiriam.

Acudam – tento gritar sabendo que a voz
Também já foi atada ou não faz parte de mim,
E se a cabeça esquematiza uma fuga,
O coração bate descompassado
Na ilusão de que irá se libertar.

Um... Apenas um bastaria,
Seria suficiente para me açoitar – ou não,
Mas não, como se já não bastasse um
Os mais resolveram também me flagelar,
Receosos da força da traqueia quando acuada.

Ataram-me.
Não um, não três, não cinco. Centenas.
Como se já não bastasse um...

Danilo del Monte


* imagem: Quadro de Isabel Lhano