domingo, 11 de setembro de 2011

A PERSONAGEM



É uma via de mão dupla. Uma vida, melhor dizendo, dividida em duas. Não, ainda não; a personagem que fala pode ser a suma de todas as outras que não falam. Sim, porque nem por não ganharem vida nos papéis pode-se dizer que o mundo não está cheio de personagens por aí afora, repletas de dores e delícias, chorando nos cantos, prendendo a respiração ofegante ou rindo de um riso leve e despretensioso. Há personagens escondidas em todas as almas, sem fazer distinção.

                Tudo que falo pode parecer demasiado misterioso, mas que ínfima coisa nesta vida não o é? Se no interior de um jovem poeta pode haver labirintos escuros onde a própria imaginação se atrapalha ao entrar e as paredes a olham dissimuladas e desdenhosas, por que haveria comigo de ser diferente? Eu não faço senão completar a arte, e como a arte nunca se finda, nunca se completa, talvez eu seja nessa vida desnecessária, talvez o que antes se julgara o extravaso da criatividade não passe de uma vaidade típica de um tempo mesquinho e pobre em todos os sentidos. Mas, motivos à parte, cheguei a vida pela necessidade que a vida tinha de me criar, e a isto atribuo o meu andar descompassado e os meus tropeços nas calçadas onde se colocam lixo, mas nem por isso deixo de caminhar, às vezes porque é necessário caminhar, outras apenas para ouvir o barulho do salto batendo no cimento. Cada passo barulhento que dou é a vida de uma personagem diferente que entra em mim, são como apelos por piedade de alguém que sente as pancadas do chicote nas costas, rasgando a carne como a faca rasga o queijo.

                São muitas vidas de mão dupla. Quando paro na contramão da vida para pensar, refletir sobre os meus caminhos, é ímpia a revelação que me diz que nada foi criado para fazer sentido, nem mesmo as casas onde se morar, ou os rios que deságuam no mar, ou as roupas que escondem o corpo. Nada, quando se olha para tudo, tudo perde o sentido, e não há moral, nem ética e nem verdade absoluta que quando encarada olhos nos olhos não possa ser defenestrada. Tudo isso se passa na cabeça variante de uma personagem que sabe que também se passa nas cabeças das outras cem milhões espalhadas por aí.

                Penso naqueles que se foram. Sei que aquele ainda pensa em mim, e que aquele outro já nem se lembra mais quem sou. Lembro do meu rosto umedecido nos momentos e na vergonha desconcertante no dia seguinte. Lembro dos sonhos que tive e que me abandonaram, um a um, a cada fase da minha vida, e penso, quando chegam os novos sonhos, que eles são apenas reciclagens dos antigos, novas faces (ou máscaras) mas exatamente os mesmos sonhos, e exatamente iguais aos outros cem milhões que passeiam pelas noites de quarto em quarto, reviram as bonecas, os vestidos e as maquiagens, se enfeitam, se perfumam antes de entrar no sono de quem se estica sobre o leito.

                Quantas vidas o dramaturgo fez o favor de cruzar? Se nas lacunas das frases de um jovem poeta há mais conteúdo do que todas as peças encenadas sobre o palco, por que não haveria de ter nas minhas palavras alguma percepção válida? Sim, porque as personagens do mundo podem igualar seu autor, como Werther se igualou a Goethe, ambos com capacidade de responder um pelo outro, tão bem que se torna difícil dizer quem é criatura e quem é criador.

Danilo del Monte

foto de Inez van Lamsweerde e Vinoodh Matadin

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