É uma via de mão dupla. Uma vida,
melhor dizendo, dividida em duas. Não, ainda não; a personagem que fala pode
ser a suma de todas as outras que não falam. Sim, porque nem por não ganharem
vida nos papéis pode-se dizer que o mundo não está cheio de personagens por aí
afora, repletas de dores e delícias, chorando nos cantos, prendendo a
respiração ofegante ou rindo de um riso leve e despretensioso. Há personagens
escondidas em todas as almas, sem fazer distinção.
Tudo
que falo pode parecer demasiado misterioso, mas que ínfima coisa nesta vida não
o é? Se no interior de um jovem poeta pode haver labirintos escuros onde a
própria imaginação se atrapalha ao entrar e as paredes a olham dissimuladas e
desdenhosas, por que haveria comigo de ser diferente? Eu não faço senão
completar a arte, e como a arte nunca se finda, nunca se completa, talvez eu
seja nessa vida desnecessária, talvez o que antes se julgara o extravaso da
criatividade não passe de uma vaidade típica de um tempo mesquinho e pobre em
todos os sentidos. Mas, motivos à parte, cheguei a vida pela necessidade que a
vida tinha de me criar, e a isto atribuo o meu andar descompassado e os meus
tropeços nas calçadas onde se colocam lixo, mas nem por isso deixo de caminhar,
às vezes porque é necessário caminhar, outras apenas para ouvir o barulho do
salto batendo no cimento. Cada passo barulhento que dou é a vida de uma
personagem diferente que entra em mim, são como apelos por piedade de alguém
que sente as pancadas do chicote nas costas, rasgando a carne como a faca rasga
o queijo.
São
muitas vidas de mão dupla. Quando paro na contramão da vida para pensar, refletir
sobre os meus caminhos, é ímpia a revelação que me diz que nada foi criado para
fazer sentido, nem mesmo as casas onde se morar, ou os rios que deságuam no
mar, ou as roupas que escondem o corpo. Nada, quando se olha para tudo, tudo
perde o sentido, e não há moral, nem ética e nem verdade absoluta que quando
encarada olhos nos olhos não possa ser defenestrada. Tudo isso se passa na
cabeça variante de uma personagem que sabe que também se passa nas cabeças das
outras cem milhões espalhadas por aí.
Penso
naqueles que se foram. Sei que aquele ainda pensa em mim, e que aquele outro já
nem se lembra mais quem sou. Lembro do meu rosto umedecido nos momentos e na
vergonha desconcertante no dia seguinte. Lembro dos sonhos que tive e que me
abandonaram, um a um, a cada fase da minha vida, e penso, quando chegam os
novos sonhos, que eles são apenas reciclagens dos antigos, novas faces (ou máscaras)
mas exatamente os mesmos sonhos, e exatamente iguais aos outros cem milhões que
passeiam pelas noites de quarto em quarto, reviram as bonecas, os vestidos e as
maquiagens, se enfeitam, se perfumam antes de entrar no sono de quem se estica
sobre o leito.
Quantas
vidas o dramaturgo fez o favor de cruzar? Se nas lacunas das frases de um jovem
poeta há mais conteúdo do que todas as peças encenadas sobre o palco, por que
não haveria de ter nas minhas palavras alguma percepção válida? Sim, porque as
personagens do mundo podem igualar seu autor, como Werther se igualou a Goethe,
ambos com capacidade de responder um pelo outro, tão bem que se torna difícil
dizer quem é criatura e quem é criador.
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