sexta-feira, 25 de maio de 2012

CANSAÇO


             Acho que não é doença isso que tenho. Acho que não é dor isso que sinto. Acho que tudo não passa de cansaço. Estou exaurido, injuriado de tanto lutar e ser vencido. Estou desiludido até mesmo da farsa que criei para sobreviver. Penso que o peso que carrego dentro dos olhos é tão grande que talvez fosse melhor furá-los; depois penso que não, que tudo o que já vi se apegou a mim como o fedor de cigarro que exalo, e depois de tanto tempo parar de fumar ou de enxergar já não faria a menor diferença.

Estou cansado de correr. Não posso simplesmente me deitar numa rede sob o sol ou no asfalto quente pelo resto dos meus dias e rir descaradamente quando o bom, quando o sóbrio, quando o exemplar morrer antes de mim? Alguém sabe por que estou correndo? Estou cansado de existir e continuar nesse erro mesmo sabendo que a existência é a maior das pegadinhas que o fado nos pregou. Estou cansado de errar e rir dos próprios erros, porque chorar seria indigno do homem.

O fato maior é que estou cansado de brigar, e mesmo brigando contra a lucidez, a sapiência da velhice me atingiu na mocidade. Briguei para nascer como hoje brigo para viver. Andar sem pisar nas poças d’água, correr sem machucar as pessoas, cumprimentá-las, não gritar depois das vinte e duas, ceder o assento preferencial, não dormir no ponto, não se atrasar, não chegar muito adiantado, não esquecer de assinar, nunca fechar o cruzamento, nunca abrir a caixa de pandora, entregar na data, pagar as contas, estender a mão... Quantas horas semanais de prostituição... para quê?

No fundo eu conheço todas as respostas que busco, e elas são negras, veem batendo as asas como um corvo que não grita porque traz no bico um frasco de veneno. No fundo todas as ideias sublimes são negras, e o mais otimista dos homens morre todos os dias de desilusão. Louvado seja o mentiroso que mantém nas almas um fundo de esperança. Louvado seja o porco que dia após dia nos engana, e que se faz de sujo para não nos deixar reparar em nós mesmos.


      Se ao menos minha cabeça explodisse de uma vez... Mas ela vai estourando pouco a pouco, bomba por bomba, flash por flash, verdade por verdade. O fato é que eu não quero mais ser homem, e não quero mais isso que chamam de juízo. Não sou um bom vivente porque desprezo a vida, nem sou um suicida porque tomo a morte como covardia. Então o que sou? Sou um homem cansado, e isso me pesa.


Danilo del Monte


*imagem: fotografia de Jorge Molder

segunda-feira, 21 de maio de 2012

VEJO CRIANÇAS



Vejo crianças que brincam nas ruas.
Vejo crianças que brincam nos parques.
Vejo que crianças que correm, que gritam,
Que tropeçam, levantam, se riem e se jogam contra os pais.
Vejo crianças que fogem dos pais
E, num ato de defesa,
Não me demoro em abrir os jornais.

Vejo crianças que me enfraquecem
A cada joelho ralado contra o chão,
A cada riso de deboche sobre a vida adulta,
A cada carência pretensiosa e egoísta.
Maquiavélicas crianças que me deixam mais fraco...
Crianças que não param um minuto de surgir,
Crianças que sugam de nós nossa miséria
E a cada abraço roubam um pouco de agonia.
Corro desesperado em busca dos jornais.

Vejo crianças e me apavoro...
Sinto-me submisso ao tempo,
Sinto-me de repente dentro da espécie mais trivial de homens.
Vejo essas crianças e logo me torno tudo o que não quis,
E não tarda um traiçoeiro sorriso tenta me incriminar...
................................................................................................
Vejo crianças que me roubam sorrisos...
Por deus, onde estão os jornais?


Danilo del Monte

terça-feira, 15 de maio de 2012

AS APRESENTAÇÕES




Eu sou uma palavra,
Eu não sou uma voz.
E você, afinal, o que é?
Você deve ser palavra também.
Você me parece uma palavra muda
Que muda da palavra seu sentido original.

Eu sou a sua sombra,
Seu pedido de socorro.
Mas você, afinal, o que é?
Você parece ser o meu amparo,
Você demonstra ser o meu espelho,
E deforma no meu rosto a imagem original.

Eu sou a sua corda,
Mas não seu professor.
Mas você, então, é o quê?
Você deve estar acima de mim
E desce correndo quando teme subir,
Assim destrói da vida o seu sentido original.

Danilo del Monte


imagem: quadro de René Magritte...

sexta-feira, 11 de maio de 2012

MONOCROMÁTICO E COLORIDO





Poesia curta, sem o que dizer
- simples e tão singelo indriso -
Rosto colorido ainda não o pude ver.

Seria atrevimento pedir-te um sorriso
Tão suave quando o anoitecer?
Talvez, no entanto, sorrir é preciso.

Se eu pudesse te ensinar a viver...

Se eu pudesse, ao menos, saber o que é isso...



Danilo del Monte

segunda-feira, 7 de maio de 2012

SOBRE EPIFANIAS E DEMÔNIOS




Epifanias deviam bater na porta e pedir licença para entrar. Não é assim não, chegando e se apossando como quem já é de casa. Na maior cara lavada entra, senta-se no sofá, desliga a TV e se presta a falar com a gente sobre algum assunto demasiado pessoal e importante. Não, não é assim... Tem que tocar a campainha, identificar-se e me dar a opção de receber ou dizer: "não é benvinda, vá-se embora", ou talvez ficar quieto, de acordo com a minha covardia, respirando tranquilamente e esperar que a intrusa volte os passos imaginando que a casa está vazia.

Seja como for, benvinda ou não, se pediu licença ou se invadiu minha pobre e falsa residência, entrou. Quantas coisas me disse que eu não queria ouvir... tantas eu já supunha, mas fugia, outras eu sequer fazia idéia que pudessem existir. De qualquer forma, tenho sido desonesto com tanta gente... Custa-me esta meia confissão, mas o uso egoísta das vidas humanas é um dos meus passatempos favoritos; e enquanto observo o interior alheio e me encanto, esqueço de quem sou e do que sou feito. Sou falso... mas o que há no mundo que pode ser considerado verdadeiro? Talvez somente a confissão da minha farsa.

Sendo direto, substituo os meus demônios pelos demônios alheios, e ao passo que extermino alguns que vivem no subsolo dos outros, os meus próprios se acumulam e dão cria dentro de mim. Demônios...  Se deveras nascem no inferno, temos dentro de nós, cada um, um inferno particular, ou somos o inferno por inteiro, horrendo e dantesco, feito de círculo sob círculo, de penitência sob penitência, porque cada um é culpado da própria mediocridade e do leite envenenado que mamou na infância. Força atrai fraqueza. Uma falsa força atrai muito mais fraquezas e o gosto protecionista e egoísta.

Epifania... eu gosto dos demônios alheios e prefiro que ninguém toque nos meus. Cultuo o inferno com amor, como um pescador cultua os seus anzóis ou um garoto suas figurinhas. Tenho sido desonesto com vocês, mas é esta a forma que tomou em mim a falsidade do mundo, todos a tem, e a minha, querendo ou não, é do tipo mais nobre. Abram os livros, crianças, abram os livros, com tantos livros que há no mundo, que diferença faria, afinal, o meu poema dantesco?

Danilo del Monte

quinta-feira, 3 de maio de 2012

NON DVCOR DVCO



Perdoe-me,
Mas as palavras que brotam de tuas esquinas,
(e são tantas as palavras), eu não sei como utilizar.
O barulho que acorda,
O barulho que não deixa dormir,
Tantas vezes confundo qual é qual
Que nas noites de maior agitação
Já não diferencio uma buzina de um violinista de esquina.
Perdoe-me.

Conheço-te como se conhece uma irmã,
Mas ainda me perco em teus caminhos
Como se perde um homem no corpo da mulher que ama.
Não, eu não te amo,
Não poderia jamais amar uma realidade,
Mas penso em ti como uma vida e não uma ferida aberta.
Se o mundo não pode me dar paz, muito menos pode ti.
Mas pra quê, se um homem quando em paz padece do próprio sossego,
Morre vítima da própria tranquilidade?

Perdoe-me pela minha incapacidade
De lançar-te às bocas dos artistas.
Não repare no meu limitado atrevimento.
Filho que sou, grato e deslumbrado,
Estendo submisso uma mão a ti
E a outra aos continentes que dançam nos teus vícios.
Chora como quem ri,
Depois se ri como quem chora;
E com tantos gritos enfurecidos, teu soluço é sobreposto,
E com tantas luzes espalhadas, seus olhos se embaçam,
E a beleza que há neles somente gente como eu pode enxergar.
Perdoe-me, deusa de sonhos.
Triste imperatriz da realidade, perdoe-me.

Assim, como quem a própria casa
Venera pelo avesso e depois pelo avesso
(como só os baianos sabem fazer),
Eu me esforço em teu louvor e te agradeço, sobretudo, pela embriaguez.
Para viver teu filho aprendi a ser plural,
E passo despercebido dentre tantos irmãos, primos e agregados...

Continuo estrangeiro.
Isso me basta.

Danilo del Monte

imagem: Alexandre Mendes

quarta-feira, 2 de maio de 2012

CASA ARRUMADA


Carlos Drummond de Andrade



Casa arrumada é assim:
Um lugar organizado, limpo, com espaço livre pra circulação e uma boa entrada de luz.
Mas casa, pra mim, tem que ser casa e não um centro cirúrgico, um cenário de novela.
Tem gente que gasta muito tempo limpando, esterilizando, ajeitando os móveis, afofando as almofadas...
Não, eu prefiro viver numa casa onde eu bato o olho e percebo logo:
Aqui tem vida...
Casa com vida, pra mim, é aquela em que os livros saem das prateleiras e os enfeites brincam de trocar de lugar.
Casa com vida tem fogão gasto pelo uso, pelo abuso das refeições fartas, que chamam todo mundo pra mesa da cozinha.
Sofá sem mancha?
Tapete sem fio puxado?
Mesa sem marca de copo?
Tá na cara que é casa sem festa.
E se o piso não tem arranhão, é porque ali ninguém dança.
Casa com vida, pra mim, tem banheiro com vapor perfumado no meio da tarde.
Tem gaveta de entulho, daquelas que a gente guarda barbante, passaporte e vela de aniversário, tudo junto...
Casa com vida é aquela em que a gente entra e se sente bem-vinda.
A que está sempre pronta pros amigos, filhos...
Netos, pros vizinhos...
E nos quartos, se possível, tem lençóis revirados por gente que brinca ou namora a qualquer hora do dia.
Casa com vida é aquela que a gente arruma pra ficar com a cara da gente.
Arrume a sua casa todos os dias...
Mas arrume de um jeito que lhe sobre tempo pra viver nela...
E reconhecer nela o seu lugar.