Antes de tudo
existem os “Parabéns”. É o ponto de partida para a nossa depreciação. Se não
houvesse o reconhecimento, quem sabe agora não estaria eu pensando em outras
literaturas?! Mas há... houve, e então existe o profundo desprezo pelo espelho,
que levanta o braço esquerdo quando se acena com o direito, e sem querer me dá
a melhor representação do que sou, o avesso dos próprios valores, oculto numa
aparência idêntica que ilude quem vê de longe ou de perto. Não pensem que não
me sinto culpado. Decerto quem me vê não consegue adivinhar, mas meu sorriso
atingiu o elogio da falsificação em níveis extremados. Não pensem que não me sinto
culpado, não pensem que posso dormir em paz. Meus pesadelos acontecem entre
montanhas de papel, entre aplausos, entre elogios e apertos de mão. Não pensem
que estou de acordo nesse trem, onde cada estação arranca do passageiro um
pedaço da sua inocência.
Infelizmente
meus palpites para a criação de um planeta não puderem ser ouvidos. Quando
nasci, já em ano falso de um falso calendário, o mundo estava pronto e há muito
tempo funcionava. Já era velho, e por ser velho carregava vícios sobre vícios,
males sobre males, e a ordem do jogo dizia que o padrão foi feito para se
seguir, e que a consciência pesada é a origem da sujeira e não a consequência, culpada
pelo fiasco do poder, pelo fracasso da vontade. Nesta filosofia, vi homens se
cumprimentando com suaves apertos de mão e piscar de olhos, vi porcos jogando
cartas, abutres bebendo uísque e aves de rapina discursando em voz suave. Não
pensem que não me sinto culpado, mas recebi também o piscar de olhos, senti a
palma macia das mãos brancas e acetinas roçarem as minhas, assisti ao jogo de
cartas, ganhei uísques e ouvi discursos, tudo isso porque viver é necessário e
impreciso.
Das
vozes que me cercam, a mais sábia e mais humana me absolve, eu estou dentro do
que não criei, e na mais baixa das esferas, sem ganhar nada, sem agir por
conta, mal sabendo como é que a vida funciona, tentando viver... Mas não me
basta, sinto respingos de lama na minha calça e andar em público já me é
constrangedor. Eu ainda me sinto culpado e a minha cama ainda é dura e desconfortável
(não como cama de pau, mas sim como as mais finas plumas). A cura de tudo isso
não é simples como parece, em cada canto há um lobo, e em cada homem, do mais
podre ao mais limpo, há direta ou indiretamente uma submissão à matilha. Dessa regra, exceção às outras regras, não se escapa. Infeliz a criatura que
disso sabe e toma consciência, malditos os seus olhos que se abrem quando não
se fecha o coração. Por essa razão os suicidas do mundo nos atingem e nos
ofendem, porque nos mostram que somos covardes e, acima de tudo, que já não era
mais possível nos aturar; e como última nobreza (e maior temeridade) abrem
espaço para que continuemos infectando essa cicatriz.
Danilo del Monte
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