sexta-feira, 20 de julho de 2012

PICASSOS QUE MOVIAM-SE POR LONDRES


A carta que segue transcrita abaixo não foi direcionada a ninguém, trata-se de um documento parte de um romance. Para ser mais preciso, QB VII, de Leon Uris, ambientado no complicado cenário europeu do pós Segunda Guerra. Uma carta dentro de um romance talvez não tenha conteúdo histórico, mas em muitos casos ilustra e aguça o nosso entendimento sobre um determinado período, é o caso das linhas confusas e assustadas que seguem mais abaixo.

No enredo da história, Angela Kelno, esposa do médico Dr Adan Kelno, polonês e ex prisioneiro de guerra nazista no campo de concentração de Jadwiga, que fugindo de acusações sobre cirurgias experimentais enquanto prisioneiro, muda-se com a esposa para Sarawak, na Malásia, onde passa quinze anos. Sarawak podia parecer um pedaço de terra pertencente a outro planeta, no entanto, foi o retorno a Inglaterra, depois de quinze anos, no início da década de 60, que realmente abalou a personagem, como um pedaço de terra repleto de gente pertencente a outra galáxia, e frente aos Picassos que moviam-se por Londres sofreu do mesmo espasmo, do mesmo choque cultural que sofreu Antony Burgess, que viu, sentiu, cheirou, relatou, mas provavelmente não entendeu.


No princípio tudo parecia como sempre, quando saltamos em Southampton. Penso que chorei durante toda a viagem para Londres. A cada quilômetro do caminho eu lembrava alguma coisa e minha tensão aumentava. Por fim chegamos. Minha primeira impressão foi a de que nada mudara em quinze anos.
Sim, havia alguns novos edifícios de apartamentos e uma nova estrada de duas vias levando a Londres, e ainda alguns prédios ultramodernos, principalmente no centro da cidade, onde as bombas haviam destruído tudo. Mas o antigo fora preservado. O palácio, a catedral, Piccadilly, Marble, Arch e a Bond Street, nada disso havia mudado.
Quando vi pela primeira vez aqueles jovens, foi-me impossível relacioná-los. Como se aquilo não fosse realmente Londres. Gente estranha de um mundo desconhecido para mim havia sido transplantada para a cidade. Alguma estranha revolução convulsiva acontecera. Sabe? Reconhece-se isto rapidamente na Inglaterra. Tudo era tão tranqüilo antes.
E olhe que fui enfermeira durante trinta anos, e portanto não me choco com facilidade. Isto sobre a nudez nas ruas. Em Sarawak a nudez acompanhava o calor e a cor dos nativos. Era tolice querer equacionar aquela gente com as pálidas figuras das jovens inglesas,na fria e calma Londres.
E os hábitos? Em Sarawak eles se baseavam nas tradições e no clima, mas aqui não tinham sentido algum. As botas altas de couro só faziam lembrar os sadistas dos bordéis franceses do século XVII, com seus chicotes terríveis. E as coxas brancas, azuladas de frio, a bainha do vestido cobrindo apenas as nádegas. O que nós estamos criando é uma geração de traseiros gelados e a futura história inglesa das hemorróidas. O mais ridículo de tudo são as imitações ordinárias de peles que nem chegam a cobrir-lhes os fundilhos. Com suas pernas finas e brancas saindo de dentro daqueles horrendos embrulhos cor-de-rosa e lilás, elas se parecem a ovos marcianos prestes a se abrir.
Em Sarawak, até o mais o mais primitivo iban penteia e prende o cabelo decentemente. A tentativa deliberada de desmazelo e enfeamento parece ser uma espécie de protesto contra a geração antiga. No entanto, querendo romper com o passado e proclamar sua individualidade, todos agora parecem saídos de uma única matriz.Os rapazes parecem meninas e as meninas são incrivelmente sem graça. Talvez queiram parecer feias por se sentirem feias e se disfarcem para não serem identificadas pelo sexo. Querem que tudo se torne absolutamente neutro.
As roupas extravagantes dos homens, calças com boca de sino, fitas, jóias falsas e veludo, me parecem gritos de socorro.
Adam conta que na clínica acontecem coisas que indicam um colapso total dos antigos valores morais. Eles confundem liberdade sexual com capacidade de dar e receber amor. E o mais triste de tudo é a ruptura da família. Adam me disse que o número de meninas grávidas atinge a uma porcentagem de cinco a seis por cento e a estatística sobre barbitúricos e uso de drogas é assustadora. Mais uma vez isto parece indicar uma necessidade de fugir para um mundo de fantasia, como os ibans costumam fazer nos tempos de tensão.
Não pude acreditar quando ouvi aquela música. Adam me disse que há casos de danos permanentes de audição. A poesia é distorcida e há uso de pornografia nas letras, que são menos coerentes de que as dos cantores ibans. O tom monótono e os recursos elétricos são tentativas adicionais de sufocar a realidade. E a dança parece uma exibição de loucos.
Isto será realmente Londres?
Tudo o que eu aprendi está sendo ridicularizado e não me parece que haja alguma coisa nova para substituir o que foi destruído. O pior de tudo é que esses homens não são felizes. Têm pensamentos abstratos sobre amor, bondade e paz, mas querem os benefícios da vida sem trabalho. Eles nos ridicularizam, mas nós os sustentamos. Não são muito leais uns com os outros e, se bem que a liberdade sexual seja amplamente divulgada, eles não conhecem o significado de ternura e de uma relação permanente.
Será que tudo isso pôde acontecer em quinze anos?
O desmoronamento de centenas de anos de civilização e tradição. Uma selva de barulhos estranhos e costumes diferentes. Só que o povo não é tão feliz quanto os ibans. Não há alegria, só desespero.

Angela Kelno
(personagem de QB VII – LEON URIS)

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