segunda-feira, 26 de novembro de 2012

O MONSTRO DA INFÂNCIA




No curto período em que fui criança
Um Monstro insano seguia meus passos
Não tinha rosto e nem tinha voz
Mas detentor que era dos acasos
Mantinha-me cativo em aliança
Membros atados a violentos nós

No curto período em que fui criança
– embora inocente, apavorada –
Sentia evoluir no monstro a ânsia
De ver a minha alma castigada
Por eu nutrir uma repugnância
Pela pesada mão idolatrada.

No curto período em que tive infância
– Pavor de ver meu braço decepado
Minha língua querendo apodrecer –
O monstro, minha imagem e semelhança
Não podia, jamais, ser enganado
Via o que mais ninguém podia ver

(Como que pode ser tranquila a infância
Se há um deus que pode te julgar
Implacável monstro a te perseguir?
Ele sabe do seu imaginar
Conhece a inocência da criança
O preço que se paga por sorrir)


Danilo del Monte


*imagem: autor desconhecido (por enquanto).

quarta-feira, 21 de novembro de 2012

PESSOA SEGUNDO SARAMAGO



“Era um homem que sabia idiomas e fazia versos. Ganhou o pão e o vinho pondo palavras no lugar de palavras, fez versos como os versos se fazem, isto é, arrumando palavras de uma certa maneira. Começou por se chamar Fernando, pessoa como toda a gente. Um dia lembrou-se de anunciar o aparecimento iminente de um super-Camões, um Camões muito maior do que o antigo, mas, sendo uma criatura conhecidamente discreta, que soia andar pelos Douradores de gabardina clara, gravata de lacinho e chapéu sem plumas, não disse que o super-Camões era ele próprio. Ainda bem. Afinal, um super-Camões não vai além de ser um Camões maior, e ele estava de reserva para ser Fernando Pessoa, fenômeno nunca antes visto em Portugal. Naturalmente, a sua vida era feita de dias, e dos dias sabemos nós que são iguais mas não se repetem, por isso não surpreende que em um desses, ao passar Fernando diante de um espelho, nele tivesse percebido, de relance, outra pessoa. Pensou que havia sido mais uma ilusão de óptica, das que sempre estão a acontecer sem que lhes prestemos atenção, ou que o último copo de aguardente lhe assentara mal no fígado e na cabeça, mas, à cautela, deu um passo atrás para confirmar se, como é voz corrente, os espelhos não se enganam quando mostram. Pelo menos este tinha-se enganado: havia um homem a olhar de dentro do espelho, e esse homem não era Fernando Pessoa. Era até um pouco mais baixo, tinha a cara a puxar para o moreno, toda ela rapada. Num movimento inconsciente, Fernando levou a mão ao lábio superior, depois respirou com infantil alívio, o bigode estava lá. Muita coisa se pode esperar de figuras que apareçam nos espelhos, menos que falem. E como estes, Fernando e a imagem que não era sua, não iriam ficar ali eternamente a olhar-se, Fernando Pessoa disse: ‘Chamo-me Ricardo Reis.’ O outro sorriu, assentiu com a cabeça e desapareceu. Durante um momento, o espelho ficou vazio, nu, mas logo a seguir outra imagem surgiu, a de um homem magro, pálido, com aspecto de quem não vai ter muita vida para gozar. A Fernando pareceu-lhe que este deveria ter sido o primeiro, porém não fez qualquer comentário, só disse: ‘Chamo-me Alberto Caeiro.’ O outro não sorriu, acenou apenas, frouxamente, concordando, e foi-se embora. Fernando Pessoa deixou-se ficar à espera, sempre tinha ouvido dizer que não há dois sem três. A terceira figura tardou uns segundos, era um homem do tipo daqueles que têm saúde para dar e vender, com o ar inconfundível de engenheiro diplomado em Inglaterra. Fernando disse: ‘Chamo-me Álvaro de Campos’, mas desta vez não esperou que a imagem desaparecesse do espelho, afastou-se ele, provavelmente cansado de ter sido tantos em tão pouco tempo. Nessa noite, madrugada alta, Fernando Pessoa acordou a pensar se o tal Álvaro de Campos teria ficado no espelho. Levantou-se, e o que estava lá era a sua própria cara. Disse então: ‘Chamo-me Bernardo Soares’, e voltou para a cama. Foi depois destes nomes e alguns mais que Fernando achou que era hora de ser também ele ridículo e escreveu as cartas de amor mais ridículas do mundo. Quando já ia muito adiantado nos trabalhos de tradução e de poesia, morreu. Os amigos diziam-lhe que tinha um grande futuro à sua frente, mas ele não deve ter acreditado, tanto que decidiu morrer injustamente na flor da idade, aos 47 anos, imagine-se. Um momento antes de acabar, pediu que lhe dessem os óculos: ‘Dá-me os óculos’, foram as suas formais e finais palavras. Até hoje nunca ninguém se interessou por saber para que os quis ele, assim se vêm ignorando ou desprezando as últimas vontades dos moribundos, mas parece bastante plausível que a sua intenção fosse olhar-se num espelho para saber quem finalmente lá estava. Não lhe deu tempo a parca. Aliás, nem espelho havia no quarto. Este Fernando Pessoas nunca chegou a ter verdadeiramente a certeza de quem era, mas por causa dessa dúvida é que nós vamos conseguindo saber um pouco mais quem somos.” 

Fonte: SARAMAGO, José. Cadernos de Lanzarote. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. pp. 642-644


quinta-feira, 8 de novembro de 2012

DE CIMA DO ALL-STAR




Lembra-se do sorriso visionário que na tua face e na minha
Iluminava as ruas por onde passávamos?
Lembra-se? Havia duas faces e um mesmo sorriso.
Tínhamos vertigens que não eram acompanhadas por nenhum seguidor,
E, como fosse o caso, brincávamos de incompreendidos.
Lembra-se dos discursos adolescentes feitos para ninguém?
Subíamos no próprio tênis all-star e lá de cima se podia ver o mundo todo.
Cada falha, cada pranto, cada repressão, cada problema.
Lembra-se de como eram belos discursos adolescentes com ideias infantis?
Eram ideias infantis faladas em tom adulto,
E o que imaginávamos era a sapiência da velhice transbordada de ensinamentos.

Os discursos hoje estão em outras bocas,
(bocas nem mais belas, nem mais tristes, nem mais eloquentes que as nossas,
bocas exatamente iguais. Bocas visionárias e solitárias. Iguais)
Os sorrisos estão renovados e ainda brincam de incompreendidos,
E nós temos os olhos baixos cravados no próprio sapato de couro.
Tudo o que podia ser visto podia ser mudado, se lembra?
Hoje tudo o que é visto é abraçado vergonhosamente pelas nossas camisas.
Lembra-se da alma que vendemos a um caixeiro viajante
Com a promessa de nos tornarmos fortes?
Hoje nós somos fracos e acabamos por perder a nossa alma.

Danilo del Monte