segunda-feira, 26 de agosto de 2013

É CONTRAMÃO




A rua pela qual eu trafegava não tinha continuidade,
À frente, uma rua transversal obrigava-me à conversão.
Dei seta para a esquerda.
– É contramão – disse-me uma velha amiga no banco do passageiro –
Veja a placa ali. É contramão.
Não discuti e dei seta para a direita.
– É contramão. Não vê a outra placa logo ali?
Irritei-me
– Mas então quem diabos entra nessa rua?
– Ora, aqueles que não sabem interpretar as placas.

Senti-me envergonhado por ser tão óbvio.

terça-feira, 6 de agosto de 2013

FOGO

E então o homem aprendeu a fazer fogo

E se não soubéssemos queimar as coisas?
- questiona-se o Inexistente -
E se o raspar de uma pedra em outra pedra
Ou de um graveto em outro graveto
Tivesse jamais produzido uma faísca?
- assim pensa o ingênuo Inexistente –

Mas então o homem aprendeu a fazer fogo

Que trágico experimento...
Que brutal sabedoria...
Desde que o homem aprendeu a fazer fogo
Adormecer tornou-se uma tarefa perigosa
- lamenta-se novamente o Inexistente -
Água, existe (sempre existiu)
Capaz de apagar qualquer chama sobre um corpo,
Mas o fogo parece ser mais belo e chamativo
Do que a fumaça que sobe quando o apagam.
Um corpo queimado é uma oferenda
(e quem há de se atrever a apagar uma oferenda?)

Para isto os homens dominaram o fogo...

Danilo del Monte

quarta-feira, 31 de julho de 2013

MOVIMENTO DOS OLHOS


Olhe para cima
Ainda que esteja em posição desconfortável
Olhe para cima
Beleza inigualável quando você move os olhos e
Olha para cima
Uma figura tão doce e tão desafiadora quando
Olha para cima

Contrariamente, a rainha se ajoelha ao escravo
Que vê o mundo como um mártir esculpido
Mas pede com voz trêmula e falha à sua dama que

Olhe para cima
Que beleza ingênua e apaixonante quando
Olha para cima
Toda a cristandade é nula e irrelevante quando
Olha para cima
Ninguém pode ver o que se esconde, então
Olhe para cima

Somente a beleza do teu olhar vence a maldade
O pecado é justamente esconder-se da virtude
Que a homens e mulheres é natural e inevitável, portanto

Olhe para cima
Ainda que esteja em posição desconfortável
...

Danilo del Monte


segunda-feira, 1 de julho de 2013

TUDO EM PRETO E BRANCO

Desespero de dentro para fora
Revelado de fora para dentro

O medo, não é preciso colorir
A angústia, não é preciso colorir
O romance, não é preciso colorir
A alma existe em preto e branco

A lente de uma câmera gótica
A lente de uma câmera surreal
Tão pródiga e tão decadente
Revela o que é invisível a olho nu
- e tudo em preto e branco –

Fotografia travada e indigesta
Retrato de um corpo sorumbático
Mente tão brilhante quanto doentia
E a fotografia precoce de uma janela...

Desespero de dentro para fora
Revelado de fora para dentro

Mas era cedo demais para abrir a janela...


Danilo del Monte


ilustração: Fotografia de Francesca Woodman

sexta-feira, 28 de junho de 2013

ODE À UMA CASA

Assim nascem as saudades.
Caixas espalhadas pelo chão.
Tábuas de uma cama desmontada.
Plásticos que protegem a fragilidade dos aparelhos.
Assim nascem as saudades,
Costumam ter origem num canto de sala
De uma casa
Anfitriã de risos e histórias,
E que agora, pouco a pouco,
Vai deixando de existir.


De que serve esta louça empacotada?
E estes quadros, por que estão fora das paredes?
Visto dessa maneira,
Este lugar parece ser maior,
Mais arejado, mas espaçoso.
A garrafa de café tem a cara de um senador que eu não conheço
E os talheres informam a cotação da bolsa de valores.
Visto dessa maneira, tudo me parece mais amplo,
E se outrora se mostrava apertado e confuso,
Este lugar,
Por certo era por tanta alegria acumulada que tomava espaço;
Alegria que inventava lugar para ficar,
Que via, do quintal exausto, o nascer do sol,
E só depois espalhava os colchões pelo chão e se acomodava.

Assim nascem as histórias.
Assim nascem as saudades.
Mas o que, afinal, estamos levando daqui?
Apenas móveis com roteiros de cinema?
Panelas cozinhando celebridades?
Não, estamos levando, também, as paredes.
Estamos levando o telhado,
Os batentes das portas, as colunas e as vigas.
Estamos levando o quintal para as reuniões,
Estamos levando o chão para as danças.
Estamos levando a casa.


Transforme-se, casa, transforme-se.
Assim nascem as histórias.
Assim nascem as saudades genuínas,
São oriundas de um canto de sala
De uma casa
Anfitriã de risos e histórias,
E que hoje vive em outro endereço,
Mas continua – e continuará -
Sendo sempre a mesma casa.

Danilo del Monte

sábado, 27 de abril de 2013

ESCOLA FACEBOOKANA DE CIÊNCIA POLÍTICA




Queremos que todos tenham boca. Mais do que isso, queremos que todos falem, porque ser dotado de boca, língua e voz não significa, necessariamente, que o indivíduo saiba se expressar. E deixa que digam, que pensem, que falem. A minha opinião, que não é a de quem escreve, mas a de quem convive com o assunto, é que a internet é um avanço extraordinário neste ponto, permite, a qualquer um, uma forma de se expressar que antes só era dada aos jornalistas e artistas. Hoje temos verdadeiros jornalistas escrevendo seus jornais pessoais, alguns tão capacitados quanto os que estão nas redações ou nas rádios. Porém, como já era de se esperar, essa abertura, essa tomada de voz, gera alguns problemas que não digo sérios, mas chatos de lidar, e o maior deles é a linha de pensamento que vem sendo criada através desse mundo livre e virtual.

De uma forma ou de outra, todos nós fazemos política. Mesmo a dona de casa que desliga a TV no horário eleitoral e repete a cada dois anos “tudo ladrão” faz política. No Facebook não é diferente. Na maior rede social do mundo proliferam imagens com mensagens de ordem, revoltas digitais e resignações, seguidas por comentários simples, mas que justamente por isso impactam e correm pela rede como um vírus maligno corre pelas células do corpo. Onde está o problema? No conteúdo que vem se espalhando. Pela mesma lógica que notícia ruim corre mais rápido do que notícia boa, textos e mensagens puramente partidários, por assim dizer, que não representam nada de proveitoso, são divulgados em uma velocidade assustadora e compartilhados entre os nossos novos “intelectuais”.

A receita é simples e garanto que todo mundo conhece. Uma imagem composta por uma foto, digamos de um disco voador, sobreposta por uma mensagem curta de cinco ou seis frases, mais ou menos assim: “enquanto o povinho idiota assiste futebol ou dá beijinho contra o Feliciano, uma espaçonave alienígena pousou no Brasil para implantar o comunismo. Votem no PT, povo otário”. Pensam que estou muito longe da realidade? Juro que eu queria estar. Ultimamente, se ficamos quietos somo,s criticados pelos intelectualóides por estarmos quietos; se brigamos, somos bobos brigando pela causa errada; se assistimos debates ou assinamos petições, somos ingênuos; se promovemos um protesto, somos baderneiros que se manifestam por nada, sendo facilmente usados como massa de manobra para algo obscuro seja feito. Vou ilustrar com a sensação pop do momento: Marco Feliciano. O que os nossos odiadores populares diriam do povo se aceitasse o pastor criminoso sem maiores problemas? “Idiotas passivos”. Mas houve manifestação popular sim, o povo foi a Brasília, brigou e ainda briga para fazer valer qualquer coisa que seja mais digna dos Direitos Humanos que o Feliciano. Boa atitude? Não! Massa de manobra facilmente usada para que o PT aprovasse a PEC 33 e tirasse do STF a soberania sobre o legislativo (processo ainda em andamento).

Onde eu quero chegar com tudo isso? Pois bem, não estão de todo errados os intelectualóides da escola facebookana de ciência política. Sempre há (e sempre haverá) a estratégia de conduzir o povo (TODOS NÓS) de olhos vendados para que os porões de Brasília possam trabalhar em seus planos macabros. O problema é que, de todas essas revoltas promovidas pela rede social, compartilhadas em suas teorias de cinco frases, quase nenhuma é feita verdadeiramente com o intuito de resolver algo. A questão está no partidarismo. No nosso governo, atualmente petista, as mensagens são tucanas; daqui alguns anos, quando tivermos um governo tucano, as mensagens serão petistas. É uma brincadeira de governo e oposição que os internautas “cabeças” levam a sério sem perceber que eles é que estão sendo verdadeiramente manipulados, muito mais do que o povão, a quem se dirigem com certa distância, como se fosse algo de outro mundo. Não faz muito tempo, vi uma imagem em que dizia que o povo brigava mais pelo direito de dar a bunda do que pelo direito de ter um país honesto, porque a parada gay tinha muito mais gente do que a marcha contra a corrupção. Desrespeitoso e hipócrita. Eu estive na marcha contra a corrupção, e realmente, havia cerca de cem pessoas apenas gritando na Avenida Paulista, mas o curioso é que a imagem que dizia isso já tinha mais de mil compartilhamentos. A matemática é uma ciência exata e não é difícil deduzir o nível de absurdo que temos aqui.

O meu apelo inútil é para que quem se preocupa deveras com o país leia e compartilhe coisas verdadeiramente úteis. Se jornalistas e cientistas políticos tivessem suas colunas tão lidas e compartilhadas quanto essas imagens, é bem provável que eu não visse tanta besteira, tanta infantilidade de quem pensa que é superior porque curtiu uma página “politizada”. Deixa que digam, que pensem, que falem? Sempre! Porém, às vezes essa liberdade exige muito da nossa paciência.

Danilo del Monte

sexta-feira, 1 de março de 2013

BARÍTONOS SOMBRIOS

As trevas amenizam a dor, diziam eles.
É na luz que todos veem seus olhos,
É na luz que todos veem suas lágrimas,
É na luz que sua face brilha; e brilhando,
Expõe o medo, a culpa e a covardia,
Como uma vitrine de uma loja faz com a roupa em liquidação.

A noite é a nossa mãe, diziam eles.
A noite encobre e permite a melancolia,
Esconde, com sua manta, os assassinos,
As aberrações, os suicidas e os covardes.
A noite grita, sofre e chora conosco,
Enquanto o dia espera, debochado, sua hora de sentenciar.

Abandone essas praias, diziam eles,
E se esconda nas cavernas... Eu os ouvi.
Eu escutei a todos eles porque não pude evitar,
Tantas eram as vozes gritando dentro de mim,
Tantos os sonhos sufocados por barítonos sombrios.
A vida é uma ópera, diziam eles, mas nunca me disseram qual.

Danilo del Monte

domingo, 24 de fevereiro de 2013

SONETO POR SONETO


Tive vontade de fazer um soneto,
Um que fosse belo, honesto e franco,
Um que fosse um sonho em branco e preto
Ou uma história de amor em preto e branco.

Tive vontade de fazer um soneto,
Porém nada merece tal encanto,
Nem o sonho, levado pelo vento,
Nem o amor, que carrega em si o pranto.

Se viverá, quem há de provar?
Sob que luar eu o verei brilhar
Ou em que esquina o acharei morto?

Desanima-me o amor não perdurar.
Vida longa há de ter meu versejar
Ou sai ele de mim como um aborto?

Danilo del Monte

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

SOBRE ESTRADAS E VIAJANTES




É sabido de todos que o homem, ao primeiro sinal de domínio sobre as próprias pernas (o que o livra da pose de um animal qualquer) deve começar a caminhar. Em nenhuma literatura do mundo está escrito que projetar a perna direita a frente da esquerda e depois a esquerda a frente da direita é um trabalho fácil, mas creio que é da nossa natureza acreditar na ilusão; ainda assim digo que seria uma tarefa menos árdua se tudo se resumisse a este simples processo físico, porém há um agravante que torna tudo cansativo e desastroso: para se caminhar, é necessário uma estrada, ou, então, a vida teria menos sentido do que aqueles fúteis em que conseguimos pensar. Se eu soubesse... se eu soubesse disso no início talvez teria feito menos esforço para tirar as mãos do chão, talvez me divertisse por mais tempo engatinhando, talvez apreciasse mais a pose de um animal, mas como todo conhecimento útil só nos é revelado quando já é inútil sabê-lo, ergui-me e dei o primeiro passo, ainda amparado por cuidadosos braços que me cercavam de todos os lados.

Durante muito tempo andei olhando os arredores e procurando uma estrada que fosse do meu agrado, nada que esboçasse a necessidade de correr, e acabei encontrando algumas coisas que me fizeram pensar. Meus olhos, que nunca se fecharam, por maldição sabe-se lá de quem, viam além dos muros e dos guardiões de cada caminho que surgia em minha frente. Quantos primeiros passos dei... quantos voltei por arrependimento... Não sei se culpo a lucidez dos olhos, sabido que nem sempre enxergam o que é real, não sei se culpo a covardia das pernas, que, mesmo mecânicas, sabem desobedecer. Decida-se livremente cada um entre os olhos e as pernas, dou a liberdade a todos e sinto até certo prazer em ser julgado. Volto à peregrinação: O fato é que nem mesmo eu posso dizer em que lugar estaria se não tivesse encontrado a mais linda passagem que já vi. Era algo de emocionar os sentidos. Tinha uma entrada estreita em arco, mas feita de pedras grandes e vistosas, como as de um templo, guardada por uma mulher de beleza triunfante. Quase inconsciente, aproximei-me temeroso e perguntei com voz inconstante: “Como se chama?”, e ela interrompeu o sorriso para dizer: “Pode me chamar de Sonho”. Quis apresentar-me, mas ela disse que eu já era conhecido e fiquei sem saber o que dizer. Não havia nada a ser feito a não ser passar pela entrada e seguir aquele caminho tão lindo quanto a guardiã. Porém, ao dar o primeiro passo, ao que a linda mulher respondeu com um aceno positivo de cabeça, detive-me com a voz de alguém que aparentemente estava muito próximo de mim, e não era difícil perceber que se tratava de outra voz feminina.

– Essa fácil atração pela beleza está longe de ser a maior virtude do homem. – virei-me para descobrir de onde vinha a mensagem, e encontrei uma mulher que guardava a entrada de uma outra estrada ao lado. Por certo não a vi antes pelo feitiço com que a primeira me condenara. A mulher que me lançou essas palavras não era bela, mas reparei que seus olhos foscos tinham a lucidez que os olhos brilhantes de Sonho não tinham.

– Não entendo o que quer dizer. – respondi meio encabulado. Ela não repetiu, nem tampouco explicou a frase, mas disse que o caminho que guardava podia não ser tão belo quanto o que me fascinara, mas era seguro e não machucava tanto os pés.

– Os pés são fortes para o calço, como as mãos macias para a carícia. – era Sonho que intervinha, falando de um jeito que não combinava com a doçura de sua voz – Quantos já não correram demais pela maciez do chão e tropeçaram... A escolha deve ser livre, como livres deixo aqueles que correm de mim porque se intimidam frente a beleza. – Calou-se Sonho. Calou-se a segunda dama. Eu entrei pelo caminho da fascinação. Diabos, pensei minutos depois, esqueci de perguntar o nome da outra mulher.

Algo me dizia que eu seria feliz em minhas escolhas. Ora essa, por que não haveria de ser? É sabido que todos nós precisamos de uma estrada para caminhar, já disse, e eu havia ingressado justamente na mais bela. A paisagem inicial era de fazer chorar lágrimas de comoção, a luminosidade, as pedras do calçamento, a beleza dos arredores, a liberdade de poder ser eu mesmo num lugar deserto. Como seria possível que tão bela estrada guardada por tão bela guardiã estivesse assim tão vazia? A solidão me fazia refletir, e enquanto eu andava, as palavras da mulher misteriosa davam voltas em minha cabeça como insetos dão voltas em torno da luz: “essa fácil atração pela beleza está longe de ser a maior virtude do homem”. Não era segredo essa minha inclinação para me perder atrás de qualquer encanto, e também, nunca me foi motivo de preocupação; ademais,  sempre ouvi dizer que essa tendência é um sinal de bom caráter, um sinal de virtude, e o sentido mais lógico era exatamente este. Continuei andando, mas nunca deixei de lado essa reflexão.

Por que voltam o caminho esses senhores? Por que correm? Depois de muito caminhar, notei que, na verdade, aquele não era um lugar exclusivamente feito para mim, havia mais pessoas, e muitas delas (talvez a maioria) não andavam, mas corriam em sentido contrário. É difícil saber os motivos que levam as pessoas a cometer atos estranhos, o mais certo é que ninguém no mundo se conhece, e isso é uma grande vantagem, ou acabaríamos em amarga solidão. Tentei conversar com uma senhora que voltava como quem tem o pai na forca, mas não tive tempo sequer de lhe chamar, tão rápido ela passou. Com outras duas pessoas, a mesma frustração. É impossível conversar com alguém que corre em sentido contrário ao seu. Curioso, porém, foi o que notei um pouco mais a frente. Um homem corria quase que em círculo: Passos adiante, parada, algo que parecia reflexão, meia volta, passos em retorno, parada, reflexão novamente, passos adiante... e assim seguia em seu ciclo vicioso. Seria esse o homem que me daria informações. Então me aproximei e indaguei a ele a situação daquele contra-fluxo em massa.

– Não sei dizer, não sei o que posso fazer – tinha o rosto cansado e perplexo – o caminho, meu jovem, muda tanto e tantas vezes que eu já nem sei onde estou. Retornei ao passar por um breu e cá estou, sem saber se o atravesso ou desisto logo desse inferno.

– Mas eu não vi nenhum trecho escuro, nada que assustasse, nada que fosse difícil de atravessar.

– É porque tudo é igual na sua idade, o que é belo permanece belo, o que é horrendo permanece horrendo, e fazer escolhas se torna uma tarefa boba e trivial. Mas conforme se anda, percebe-se que nem tudo o que é necessário cabe nesse caminho que tomamos... – e ao dizer esta última frase, arregalou os olhos como se desse a si mesmo a inspiração que faltava. Não querendo me dizer mais nada, pisou decididamente na faixa de retorno e começou a andar. Já há dez passos de mim, lembrei-me do primeiro erro e não quis cometer o segundo.

– Senhor... Como se chama? – gritei

– Sou Medo, – respondeu sem virar o rosto – mas não é esse meu nome de batismo, já carreguei outros rótulos ao longo da jornada.

E não é que aquele homem estava certo?! Depois daquele ponto, o caminho se alterava o tempo todo. Se não ponho referências, como vemos em qualquer estrada cotidiana, dessas que trafegam carros, é porque não havia mesmo nenhuma sinalização, nenhum mapa, e só não digo que é possível se perder porque também não há como saber, caso isso aconteça. Aquela já nem parecia a estrada com que me encantei. Conforme as pedras do calçamento ficavam para trás, eu aprendia que é necessário saber nadar para aproveitar um mergulho no rio, e que antes de subir uma montanha é melhor aprender a respirar, mas montanhas e rios agora pareciam coisas de outro mundo, tudo o que eu via eram sombras, sombras, sombras... Quantos prantos sentidos não me invadiram os ouvidos, quantas indagações não me invadiram o pensamento... Tudo isso fez despertar um monstro dentro de mim. Talvez despertar não seja a palavra mais adequada, não estou certo se havia em mim um monstro que dormia, se não havia, há agora, e a palavra correta seria criar ou nascer. De uma forma ou de outra, ignorando questões semânticas, o monstro que passou a existir me incutia certo terror e cheguei a cogitar voltar o caminho como o pobre Medo havia feito, mas provavelmente ele não tinha o orgulho degenerativo que carrego em mim, e voltar tudo aquilo também seria uma grande empreitada, sem falar na vergonha de ter de olhar nos olhos arregalados de Sonho e dizer: “Desculpe”. Foi depois disso que o pânico, a exemplo do monstro, começou a crescer na minha cabeça outrora pueril, e foi talvez esse pânico que me permitiu avistar de longe um homem que fumava numa curva da estrada, encostado ao muro de pedras. Usava uma roupa preta, estava de capuz e mantinha a cabeça baixa, e como tudo o que se ouve serve para alguma coisa, decidi pedir algum conselho:

– E o senhor, como se chama? – E ele me respondeu com a voz mais tranquila e grave que já ouvi:

– Eu, meu jovem, me chamo Desespero. Não costumo conversar com viajantes da estrada, creio que minha figura os afugenta. – e então levantou o rosto para mim...

Não sei descrever como era essa figura Desespero, que afugentava os viajantes, mas alguma coisa eu senti naquele olhar. Afastei alguns passos e ele me entendeu. Olhei para trás e vi o caminho de volta, depois olhei para frente e tentei decifrar as condições da estrada, mas meus olhos, embora ainda lúcidos, já não possuíam o alcance dos primeiros anos. Então olhei para trás novamente, e novamente para frente. Gastei alguns minutos nessa análise, não porque estivesse ainda escolhendo entre as alternativas, mas sim porque meu corpo estava entregue a um movimento mecânico enquanto minha cabeça trabalhava em outros horizontes. “Essa fácil atração pela beleza está longe de ser a maior virtude do homem”... Eu entendia... Definitivamente agora eu entendia as palavras daquela mulher, e as palavras formavam uma frase tão óbvia que senti vergonha da minha falta de percepção. Tudo era óbvio, e por ser óbvio parei de caminhar pela primeira vez e sentei-me no chão, de cabeça baixa. Posso dizer que derramei algumas lágrimas, mas meu estado de perplexidade era tão grande que não estou certo disso, então mantenho a dúvida. Desespero ria-se de mim como quem ri-se de um bêbado que cai na porta do bar, mas eu só pensava agora naquela estranha mulher que dizia tudo tão claramente, aquela mulher que agora eu sabia por que despertou a minha atenção, e sabia até mesmo o seu nome de batismo, que carrega consigo, único e inalterável desde sempre.

Danilo del Monte


* ilustração: fotografia de Mariana Altivo 

quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

UM DIA SAÍ EM BUSCA DELA




Resolvi cruzar a cidade em busca dela,
Certo de que em algum lugar ela haveria de cruzar comigo,
Andando, calmamente, em minha direção com sua silhueta elegante.
O local mais adequado? Avenida Paulista, é claro.
Como cansasse de percorrê-la,
Sentei-me e me propus a esperar,
Pelo tempo que fosse, me propus esperar.
Sentei-me num bar
(desses que tem mesa na calçada,
Pois era necessário observar tudo do lado de fora)
E então parei meu tempo.
De olhos atentos, fiquei a procurar.

Onde será que ela pode estar?
A princípio não vi ninguém. Ela não vem.
Então, com meus olhos úmidos vi um anjo na calçada,
Tão bonito que tanta gente parou para observar.
Não se movia, parecia morto de susto,
Mas ainda tinha os olhos vivos
E viu quando um menino lhe entregou uma moeda.
Era um anjo pobre.
Curvou-se, agradeceu, exibiu-se e voltou a morrer.
O anjo bem que podia ser Ela...

Conheço essa melodia que toca agora...
É algo composto por Bach.
Antes tocava Beatles - Eleanor Rigby, para ser preciso -
E todas as pessoas pareciam solitárias como eu.
Somente agora me ocorre que Bach podia ser Ela,
Mas não se parece,
Como Beatles também não parecia,
E tampouco os músicos da calçada.
Por que será que ela não vem?

(Distraio-me um instante com o skatista
Que atropela um trabalhador saindo do prédio.
Pobre homem engravatado...
Mas também foi pego de surpresa, o skatista,
O homem atravessou a calçada de assalto.
De qualquer maneira, pior para o trabalhador,
Pior para sua pasta que rolou na poça d’água)

Mas veja, veja...
Há um palhaço vindo em minha direção.
Noto a maquiagem, os sapatos gigantes, a peruca...
É um palhaço clássico.
Porém agora, conforme ele aproxima, noto que está triste.
É um palhaço triste...
Tem cara de choro e de cansaço...
Então é Ela!
Vem no corpo do palhaço triste que vem,
E se está triste, só pode ser por causa dela.
Venha, venha palhaço, venha.
Ele chega, mas passa distante de mim,
Lá quase no meio fio da calçada,
Anda depressa e sequer vira o rosto.
Vi o palhaço de perfil, debochando de mim
Com seus olhos de choro,
Olhos que bem podiam ser dela... mas não eram.
Ela não era o anjo, nem a música,
Não era Ela o skatista e nem o homem de terno,
E o palhaço era só um palhaço
Que já não sei se estava triste
Ou se nascera com os olhos em contradição com sua carreira.

Ela não vem,
Mas quem pode negar que a encontrei?

Danilo del Monte


*imagem: