É sabido de todos que o homem, ao
primeiro sinal de domínio sobre as próprias pernas (o que o livra da pose de
um animal qualquer) deve começar a caminhar. Em nenhuma literatura do mundo
está escrito que projetar a perna direita a frente da esquerda e depois a
esquerda a frente da direita é um trabalho fácil, mas creio que é da nossa
natureza acreditar na ilusão; ainda assim digo que seria uma tarefa menos árdua
se tudo se resumisse a este simples processo físico, porém há um agravante que
torna tudo cansativo e desastroso: para se caminhar, é necessário uma estrada,
ou, então, a vida teria menos sentido do que aqueles fúteis em que conseguimos
pensar. Se eu soubesse... se eu soubesse disso no início talvez teria feito
menos esforço para tirar as mãos do chão, talvez me divertisse por mais tempo
engatinhando, talvez apreciasse mais a pose de um animal, mas como todo
conhecimento útil só nos é revelado quando já é inútil sabê-lo, ergui-me e dei o
primeiro passo, ainda amparado por cuidadosos braços que me cercavam de todos os lados.
Durante muito tempo andei olhando
os arredores e procurando uma estrada que fosse do meu agrado, nada que
esboçasse a necessidade de correr, e acabei encontrando algumas coisas que me fizeram
pensar. Meus olhos, que nunca se fecharam, por maldição sabe-se lá de quem, viam
além dos muros e dos guardiões de cada caminho que surgia em minha frente. Quantos primeiros passos dei... quantos voltei por arrependimento... Não sei se
culpo a lucidez dos olhos, sabido que nem sempre enxergam o que é real, não sei
se culpo a covardia das pernas, que, mesmo mecânicas, sabem desobedecer. Decida-se livremente cada um entre os olhos e as pernas, dou
a liberdade a todos e sinto até certo prazer em ser julgado. Volto à
peregrinação: O fato é que nem mesmo eu posso dizer em que lugar estaria se não
tivesse encontrado a mais linda passagem que já vi. Era algo de
emocionar os sentidos. Tinha uma entrada estreita em
arco, mas feita de pedras grandes e vistosas, como as de um templo, guardada por uma mulher de beleza
triunfante. Quase inconsciente, aproximei-me temeroso e perguntei com voz
inconstante: “Como se chama?”, e ela interrompeu o sorriso para dizer: “Pode me chamar de Sonho”. Quis apresentar-me, mas ela disse que eu já era conhecido e fiquei sem
saber o que dizer. Não havia nada a ser feito a não ser passar pela entrada
e seguir aquele caminho tão lindo quanto a guardiã. Porém, ao dar o primeiro
passo, ao que a linda mulher respondeu com um aceno positivo de cabeça, detive-me com a voz de alguém que aparentemente estava muito próximo de mim, e não
era difícil perceber que se tratava de outra voz feminina.
– Essa fácil atração pela beleza
está longe de ser a maior virtude do homem. – virei-me para descobrir de onde
vinha a mensagem, e encontrei uma mulher que guardava a entrada de uma outra estrada
ao lado. Por certo não a vi antes pelo feitiço com que a primeira me condenara.
A mulher que me lançou essas palavras não era bela, mas reparei que seus olhos
foscos tinham a lucidez que os olhos brilhantes de Sonho não tinham.
– Não entendo o que quer dizer. –
respondi meio encabulado. Ela não repetiu, nem tampouco explicou a frase, mas
disse que o caminho que guardava podia não ser tão belo quanto o que me
fascinara, mas era seguro e não machucava tanto os pés.
– Os pés são fortes para o calço,
como as mãos macias para a carícia. – era Sonho que intervinha, falando de um jeito que não combinava com a doçura de sua voz – Quantos já não
correram demais pela maciez do chão e tropeçaram... A escolha deve ser livre,
como livres deixo aqueles que correm de mim porque se intimidam frente a
beleza. – Calou-se Sonho. Calou-se a segunda dama. Eu entrei pelo caminho da
fascinação. Diabos, pensei minutos depois, esqueci de perguntar o nome da
outra mulher.
Algo me dizia que eu seria feliz
em minhas escolhas. Ora essa, por que não haveria de ser? É sabido que todos
nós precisamos de uma estrada para caminhar, já disse, e eu havia ingressado justamente na mais bela. A
paisagem inicial era de fazer chorar lágrimas de comoção, a luminosidade, as
pedras do calçamento, a beleza dos arredores, a liberdade de poder ser eu mesmo
num lugar deserto. Como seria possível que tão bela estrada guardada por tão
bela guardiã estivesse assim tão vazia? A solidão me fazia refletir, e enquanto
eu andava, as palavras da mulher misteriosa davam voltas em minha cabeça como insetos dão voltas em torno da luz: “essa
fácil atração pela beleza está longe de ser a maior virtude do homem”. Não era
segredo essa minha inclinação para me perder atrás de qualquer encanto, e também, nunca me foi motivo de preocupação; ademais, sempre ouvi dizer que essa
tendência é um sinal de bom caráter, um sinal de virtude, e o sentido mais
lógico era exatamente este. Continuei andando, mas
nunca deixei de lado essa reflexão.
Por que voltam o caminho esses
senhores? Por que correm? Depois de muito caminhar, notei que, na verdade,
aquele não era um lugar exclusivamente feito para mim, havia mais pessoas, e
muitas delas (talvez a maioria) não andavam, mas corriam em sentido contrário. É
difícil saber os motivos que levam as pessoas a cometer atos estranhos, o
mais certo é que ninguém no mundo se conhece, e isso é uma grande vantagem, ou
acabaríamos em amarga solidão. Tentei conversar com uma senhora que voltava
como quem tem o pai na forca, mas não tive tempo sequer de lhe chamar, tão
rápido ela passou. Com outras duas pessoas, a mesma frustração. É impossível
conversar com alguém que corre em sentido contrário ao seu. Curioso, porém, foi
o que notei um pouco mais a frente. Um homem corria quase que em círculo: Passos adiante, parada, algo que parecia reflexão, meia volta, passos em
retorno, parada, reflexão novamente, passos adiante... e assim seguia em seu
ciclo vicioso. Seria esse o homem que me daria informações. Então me aproximei
e indaguei a ele a situação daquele contra-fluxo em massa.
– Não sei dizer, não sei o que
posso fazer – tinha o rosto cansado e perplexo – o caminho, meu jovem, muda
tanto e tantas vezes que eu já nem sei onde estou. Retornei ao passar por um
breu e cá estou, sem saber se o atravesso ou desisto logo desse inferno.
– Mas eu não vi nenhum trecho
escuro, nada que assustasse, nada que fosse difícil de atravessar.
– É porque tudo é igual na sua idade,
o que é belo permanece belo, o que é horrendo permanece horrendo, e fazer
escolhas se torna uma tarefa boba e trivial. Mas conforme se anda, percebe-se
que nem tudo o que é necessário cabe nesse caminho que tomamos... – e ao dizer
esta última frase, arregalou os olhos como se desse a si mesmo a inspiração que
faltava. Não querendo me dizer mais nada, pisou decididamente na faixa de
retorno e começou a andar. Já há dez passos de mim, lembrei-me do primeiro
erro e não quis cometer o segundo.
– Senhor... Como se chama? – gritei
– Sou Medo, – respondeu sem virar o rosto – mas não é
esse meu nome de batismo, já carreguei outros rótulos ao longo da jornada.
E não é que aquele homem estava
certo?! Depois daquele ponto, o caminho se alterava o tempo todo. Se não ponho
referências, como vemos em qualquer estrada cotidiana, dessas que trafegam carros, é porque não havia mesmo
nenhuma sinalização, nenhum mapa, e só não digo que é possível se perder porque
também não há como saber, caso isso aconteça. Aquela já nem parecia a estrada com que
me encantei. Conforme as pedras do calçamento ficavam para trás, eu aprendia que
é necessário saber nadar para aproveitar um mergulho no rio, e que antes de
subir uma montanha é melhor aprender a respirar, mas montanhas e rios agora
pareciam coisas de outro mundo, tudo o que eu via eram sombras, sombras,
sombras... Quantos prantos sentidos não me invadiram os ouvidos, quantas
indagações não me invadiram o pensamento... Tudo isso fez despertar um monstro
dentro de mim. Talvez despertar não seja a palavra mais adequada, não estou
certo se havia em mim um monstro que dormia, se não
havia, há agora, e a palavra correta seria criar ou nascer.
De uma forma ou de outra, ignorando questões semânticas, o monstro que passou a existir me incutia certo terror e cheguei a
cogitar voltar o caminho como o pobre Medo havia feito, mas provavelmente ele
não tinha o orgulho degenerativo que carrego em mim, e voltar tudo aquilo também
seria uma grande empreitada, sem falar na vergonha de ter de olhar nos olhos arregalados
de Sonho e dizer: “Desculpe”. Foi depois disso que o
pânico, a exemplo do monstro, começou a crescer na minha cabeça outrora pueril, e foi talvez esse pânico que me permitiu avistar de longe um
homem que fumava numa curva da estrada, encostado ao muro de pedras. Usava uma roupa preta,
estava de capuz e mantinha a cabeça baixa, e como tudo o que se ouve serve para
alguma coisa, decidi pedir algum conselho:
– E o senhor, como se chama? – E ele me respondeu com a voz
mais tranquila e grave que já ouvi:
– Eu, meu jovem, me chamo Desespero. Não costumo conversar com viajantes da
estrada, creio que minha figura os afugenta. – e então levantou o rosto para
mim...
Não sei descrever como era essa figura
Desespero, que afugentava os viajantes, mas alguma coisa eu senti naquele olhar. Afastei alguns passos e ele
me entendeu. Olhei para trás e vi o caminho de volta, depois olhei para frente
e tentei decifrar as condições da estrada, mas meus olhos, embora ainda
lúcidos, já não possuíam o alcance dos primeiros anos. Então olhei para trás
novamente, e novamente para frente. Gastei alguns minutos nessa análise, não
porque estivesse ainda escolhendo entre as alternativas, mas sim porque meu
corpo estava entregue a um movimento mecânico enquanto minha cabeça trabalhava
em outros horizontes. “Essa fácil atração pela beleza está longe de ser a maior
virtude do homem”... Eu entendia... Definitivamente agora eu entendia as palavras daquela mulher,
e as palavras formavam uma frase tão óbvia que senti vergonha da minha
falta de percepção. Tudo era óbvio, e por ser óbvio parei de caminhar pela
primeira vez e sentei-me no chão, de cabeça baixa. Posso dizer que derramei
algumas lágrimas, mas meu estado de perplexidade era tão grande que não estou
certo disso, então mantenho a dúvida. Desespero ria-se de mim como quem ri-se de um
bêbado que cai na porta do bar, mas eu só pensava agora naquela estranha
mulher que dizia tudo tão claramente, aquela mulher que agora eu sabia por que despertou a minha atenção, e sabia até mesmo o seu nome de batismo, que
carrega consigo, único e inalterável desde sempre.
Danilo del Monte
* ilustração: fotografia de Mariana Altivo