quarta-feira, 22 de outubro de 2014

DAS COISAS QUE SOBRAM



Então, o que sobrou?
Um toco de árvore fincado à terra.
Sobraram quatro ou cinco páginas
Mal escritas, mal inspiradas e muito mal desenvolvidas.

Quatro ou cinco noites mendigadas,
Algumas doses de cachaça mal tragadas,
Algumas conversas muito mal articuladas.
Quando foi que nos tornamos tão artificiais?
Da insanidade de outras eras,
Ficaram lampejos sóbrios e doentios
Da sobriedade que tenta nos matar.
De Pompeia restam múmias,
E não choramos por Troia o mesmo que choramos por Pompeia. 

Então, o que sobrou?
Algumas mensagens vazias de felicitações.
Sobraram quatro ou cinco presentes
Que o descaso tenta a todo custo destruir.

Danilo del Monte

quinta-feira, 28 de agosto de 2014

DUAS FACES



Tinha um rosto
- olhos abertos, nariz e boca -
E tenho certeza que poderia sorrir
Se assim permitisse sua profissão.
Tinha um rosto
- olhos cerrados, nariz e boca -
E não poderia mudar de expressão
Nem com toda a força do desejo.

Na complexidade deste mal estar,
Tentei ser imparcial e frio
Como a vida que cruelmente nos foi emprestada.
Não consegui.
Sendo puxado pela serenidade do aflito
E pela perturbação da frígida,
Sucumbi,
Perdi o maravilhoso senso de lucidez
E ainda agora procuro me levantar da terra.

Mas e então,
Entre esses dois que se ofenderam tanto,
Que tanto fugiram um do outro,
Que tanto se evitaram
E que agora parecem se amar,
Como será a convivência?
Não há riscos e nem faltas.
Não há erros e nem medos.
Não há.

E no fim,
Como quem se sente obrigada
A uma frase de efeito para encerrar a trama,
Ergue os braços, abre os olhos que nunca fechou
E balbucia:
“Agora que me vistes, jamais esquecerás de mim; E ainda que fujas, ainda que chores, toda e qualquer referência da tua vida trair-te-á em benefício meu. É só uma questão de tempo.” 

Danilo del Monte

segunda-feira, 14 de julho de 2014

AS COSTAS DAQUELA PLACA NO LARGO DA BATATA


Seria cômico
Passar andando pela vida
Sem esbarrar no transeunte que errou na contramão.
Seria cômico
- como seria -
Correr pelas calçadas
Ensurdecedoras sem escutar
O silêncio da música que pulsa logo ao lado.
.
Seria cômico
Não notar os pinguins
Travando como pinguins as catracas do metrô.
Seria cômico
- e não pouco cômico -
Reparar que mais do que bois,
As pessoas se parecem com pinguins nas catracas do metrô.
.
Seria cômico
Sentar-se sobre a ponte e não sentir
- nem por um minuto -
A vontade iminente de pular.
Seria cômico
Agarrar-se ao chão de pedras sujas
E temer se levantar só pelo pavor
De sentir o vento batendo nos cabelos.
.
Seria cômico
- por fim -
Escrever como um ferreiro
E, como um ferreiro,
Jamais viver o que escreveu.
Seria cômico investir,
Seria cômico intuir,
Seria cômico desejar
Como quem quis, tentou e até fez,
Mas saiu da experiência sequelado,
Torto, cambaleante e falando sozinho.
.
Seria cômico
- ah, como seria... -
Seria cômico se não fosse comigo.

Danilo del Monte

segunda-feira, 2 de junho de 2014

FALSO E DESONESTO




Se há rima,
Se há métrica,
Se há preocupação quanto ao encaixe do verso,
Então há pudor.

Não há Bocage desbocado
Que me convença
Ser honesto
Um caralho
Pautado em uma quadra.

E quantas porras houver no soneto...
Se é soneto,
Ou é desonesto
Ou é falso
(porque pode-se muito bem ser falso sendo honesto).

E se me cativam
Putas que parem
Ou não parem
Em abortos decassílabos,
Confesso estar exposto
À minha falsidade cultural.

Neste caso,
Sendo falso,
Sou também um desonesto.

Danilo del Monte

*imagem: Bocage e as Ninfas 

quarta-feira, 14 de maio de 2014

REDONDILHAS ENGANADAS


É difícil de se ver
Um orgulho que impera
Escondido em um sorriso.
Pra quem pode perceber,
O peito aberto é’um aviso
De que o nosso vício ingênuo
Perde a passada na pressa
De seu próprio caminhar.



É difícil relembrar,
Por trás da doçura morta,
O amargo funeral.
Mas o réquiem já não há,
E a vela ainda acesa
Sobre um negro castiçal
Revela escultural
A vontade de fugir.


É penoso admitir
Que escondido no motejo
Há um sorriso de menina,
Mas podemos intuir
Que a mesma bailarina
Que dançava no cortejo
Esconjura as suas noites,
Incapaz de adormecer. 

É difícil de se ver...

Danilo del Monte

terça-feira, 6 de maio de 2014

SÃO PAIS E MÃES




Até o amor é compreensível.
Seja como um erro fatal e incorrigível,
Seja como um combustível que dá força
E que se esgota mais cedo ou mais tarde,
Como todo combustível,
De alguma forma é explicado e interpretado.

A saudade, por outro lado,
Assemelha-se mais a uma máquina de tortura medieval.
A vítima não sabe por que sofre, mas sofre,
E se destrói tentando entender
Como foi parar nas amarras mais antigas
E incompreensíveis da história humana.

No meu espírito masoquista que procura a dor,
Torci meu pescoço até que minha face ocupou
O lugar destinado a minha nuca.
Caminhei como quiromantes condenados
E atei-me, consciente e ingênuo,
Ao primeiro mistério do Tempo, chamado Saudade.

Estavam ali, junto comigo,
Tantos errantes, irresponsáveis e perdidos,
Todos sorridentes e tão despreocupados...
As bexigas ainda estavam penduradas,
As bolas, furadas pelos vizinhos rabugentos
E os papéis, coloridos e amassados, jogados para um canto.
Havia gente que ria,
Mas havia muito mais gente que chorava,
No entanto, não havia tristeza e nem angústia,
Mas sim uma mera dor momentânea
De um tropeço em alta velocidade
Que termina com a cara rastejando pelo chão.

Senti que algumas lágrimas molharam minhas costas.

Quando voltei à forma original,
Isto é, com o rosto alinhado à direção dos pés,
E resolvi de cara e coragem mirar o presente,
Percebi que o flagelo pesava muito mais,
A ponto de ser quase impossível carregá-lo.
Vi pais e mães sentados ao redor de um berço
E tantos homens sérios vestidos a rigor.
Vi buquês, vi bolos, vinhos e espumantes
E vi decorações infantis num salão vasto e colorido.
Vi romances acorrentados em papéis,
Presos entre paredes brancas e telas de proteção,
Gritando desesperados por uma efêmera ilusão de liberdade.

Quando abandonei a maldição dos quiromantes
Senti desfalecer no espaço-tempo
Algo que, por ser desnecessário formalizar,
Nunca teve nome e nem sobrenome,
Mas que costumávamos chamar Realidade.

Danilo del Monte