sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015

METADE

... e foi assim que metade de mim eu joguei fora,
e essa metade - fio de Ariadne - conseguiu voltar,
mas quando chegou era a metade de metade.

do que voltou, metade agora vai espontaneamente embora.
metade minha se desespera, corre atrás dela e se apavora
enquanto que a outra metade reprime o soluçar.

 ... e é assim que, do meu olhar, metade se umedece e chora

outra metade fica estática e observa ela afastar.



Danilo del Monte

terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

ERA UM BOI



Durante todo esse tempo,
Como pôde nos enganar a todos nós?
Caminhava sobre duas pernas,
Falava pelos cotovelos,
Tirava fotos de frente para o espelho
E as publicava com frases feitas e mal articuladas.

Todo esse tempo,
Comia de garfo e faca.
Óculos escuros nos dias de sol.
Espremia-se no trem das sete horas que partia da Luz
E durante as noites não fazia outra coisa
Senão correr atrás de mulher.
Quem seria capaz de desconfiar?

Era um boi.
Apontemos agora o dedo na cara,
Soterrada sabe-se lá onde, esquecida.
Costelas, carnes musculosas,
Apontemos agora o dedo para o fígado,
Para os intestinos
Que estão expostos, pendurados, nas vitrines dos açougues.
Não era homem. Era boi.

A caminho do flagelo, lhe enfraqueceram as pernas,
E com as mãos espalmadas no chão,
Como um boi,
Parou de quatro na linha demarcada,
Abaixou a cabeça, ofereceu o pescoço,
E apenas sentiu um tremelique no estômago
Quando soou a sineta
Que alerta os funcionários do matadouro.
Mais um, disse alguém.
Vamos trabalhar.

Era um boi porque caiu de joelhos
Quando o bate-estaca lhe acertou a nuca.
Como homem, tentou gritar,
Armar um escândalo,
Mas como boi,
O que se ouviu foi um mugido tímido e dolente
Como quem diz que não tem nada a dizer.

Sucumbiu.
Ainda trazia os olhos vivos
Quando as afiadas facas de corte
Começaram a lhe rasgar as carnes
- em bifes, pedaços, tiras -.
Com serras, lhe cortaram os ossos.
Com ganchos, lhe penduraram pelos pés
Que há minutos atrás tinham caminhado
Até a linha amarela que indica o sofrimento.
Sem uma queixa. Sem um protesto.
Sem uma única tentativa de subversão
À ordem a que estão sujeitos aqueles que devem morrer.
Sem uma lágrima na hora do perigo.

Não era um homem, isso é óbvio,
Era um boi,
Mas não porque fosse um bovino,
Não porque ruminasse,
Não porque fosse grande, forte,
Da compleição física de um boi. Não.
Mas sim porque Torquato Neto já havia o condenado,
Desde muito tempo,
A ser boi.

Danilo del Monte


* fotografia de Rodrigo Marcondes