segunda-feira, 28 de novembro de 2011

A VIDA E O TEMPO

Viviane Mosé
(do livro Pensamentos do Chão)



quem tem olhos pra ver o tempo soprando sulcos na pele soprando 
sulcos na pele soprando sulcos?
o tempo andou riscando meu rosto
com uma navalha fina
sem raiva nem rancor
o tempo riscou
 meu rosto
com calma

(eu parei de lutar contra o tempo
ando exercendo instantes
acho que ganhei presença)

acho que a vida anda passando a mão em mim.
a vida anda passando a mão em mim.
acho que a vida anda passando.
a vida anda passando.
acho que a vida anda. 
a vida anda em mim.
acho que há vida em mim.
a vida em mim anda passando.
acho que a vida anda passando a mão em mim
e por falar em sexo quem anda me comendo 
é o tempo 
na verdade faz tempo mas eu escondia 
porque ele me pegava à força e por trás

 
um dia resolvi encará-lo de frente e disse: tempo 
se você tem que me comer 
que seja com o meu consentimento 
e me olhando nos olhos
acho que ganhei o tempo 
de lá pra cá ele tem sido bom comigo 
dizem que ando até remoçando

...

Página da poetisa: http://www.vivianemose.com.br/#



quinta-feira, 24 de novembro de 2011

A FÁBRICA DE IDEIAS


 texto de Friedrich Nietzsche
(do livro A GENEALOGIA DA MORAL)

— Alguém quer descer o olhar sobre o segredo de como se fabricam ideais na terra? Quem tem a coragem para isso?… Muito bem! Aqui se abre a vista a essa negra oficina. Espere ainda um instante, senhor Curioso e Temerário: seu olho deve primeiro se acostumar a essa luz falsa e cambiante… Certo! Basta! Fale agora! Que sucede ali embaixo? Diga o que vê, homem da curiosidade perigosa — agora sou eu quem escuta. —
— “Eu nada vejo, mas por isso ouço muito bem. É um cochichar e sussurrar cauteloso, sonso, manso, vindo de todos os cantos e quinas. Parece-me que mentem; uma suavidade visguenta escorre de cada som. A fraqueza é mentirosamente mudada em mérito, não há dúvida — é como você disse” —
— Prossiga!
— “e a impotência que não acerta contas é mudada em ‘bondade’; a baixeza medrosa, em ‘humildade’; a submissão àqueles que se odeia em ‘obediência’ (há alguém que dizem impor esta submissão — chamam-no Deus). O que há de inofensivo, fraco, a própria covardia na qual é pródigo, seu aguardar-na-porta, seu inevitável ter-de-esperar, recebe aqui o bom nome de ‘paciência’, chama-se também a virtude; o não-poder-vingar-se chama-se não-querer-vingar-se, talvez mesmo perdão (‘pois eles não sabem o que fazem — somente nós sabemos o que eles fazem!’). Falam também do ‘amor aos inimigos’ — e suam ao falar disso.”
— Prossiga!
— “São miseráveis, não há dúvida, esses falsificadores e cochichadores dos cantos, embora se mantenham aquecidos agachando-se apertados — mas eles me dizem que sua miséria é uma eleição e distinção por parte de Deus, que batemos nos cães que mais amamos; talvez essa miséria seja uma preparação, uma prova, um treino, talvez ainda mais — algo que um dia será recompensado e pago com juros enormes, em ouro, não! Em felicidade. A isto chamam de ‘bem-aventurança’, ‘beatitude’.”
— Prossiga!
— “Agora me dão a entender que não apenas são melhores que os poderosos, os senhores da terra cujo escarro têm de lamber (não por temor, de modo algum por temor! E sim porque Deus ordena que seja honrada a autoridade) — que não apenas são melhores, mas também ‘estão melhores’, ou de qualquer modo estarão um dia. Mas basta, basta! Não aguento mais. O ar ruim! O ar ruim! Esta oficina onde se fabricam ideais — minha impressão é de que está fedendo de tanta mentira!”
— Não! Um momento! Você ainda não falou no golpe de mestre desses nigromantes, que produzem leite, brancura e inocência de todo negror — não percebeu a consumada perfeição do seu refinamento, a sua mais ousada, sutil, engenhosa e mendaz estratégia de artista? Preste atenção! Esses animais cheios de ódio e vingança — que fazem justamente do ódio e da vingança? Você ouviu essas palavras? Você suspeitaria, ouvindo apenas as suas palavras, que se encontra entre homens do ressentimento?…
— “Compreendo; vou abrir mais uma vez os ouvidos (ah! E fechar o nariz). Somente agora escuto o que eles tanto diziam: ‘Nós, bons — nós somos os justos’ — o que eles pretendem não chamam acerto de contas, mas ‘triunfo da justiça’; o que eles odeiam não é o seu inimigo, não! Eles odeiam a ‘injustiça’, a ‘falta de Deus’; o que eles creem e esperam não é a esperança de vingança, a doce embriaguez da vingança (— ‘mais doce que mel’, já dizia Homero), mas a vitória de Deus, do deus justo sobre os ateus; o que lhes resta para amar na terra não são os meus irmãos no ódio, mas seus ‘irmãos no amor’, como dizem, todos os bons e justos da terra.
— E como chamam aquilo que lhes serve de consolo por todo o sofrimento da vida? — sua fantasmagoria da bem-aventurança futura antecipada?
— “Quê? Estou ouvindo bem? A isto chamam de ‘Juízo Final’, o advento do seu reino, do ‘Reino de Deus’ — mas por enquantovivem ‘na fé’, ‘no amor, ‘na esperança’.”
— Basta! Basta!

...

domingo, 13 de novembro de 2011

ME SINTO ALHEIO A MIM




Me sinto alheio a mim.
No fundo não sou eu que sinto, porque nem sei se sinto ou o que sinto.
Sou um eu em busca de mim,
Em buscas incessantes dentro do que sou,
Mas não sei o que sou, ou mesmo o que busco.

Talvez eu seja um punhado de sensações distintas que às vezes não sente.
Talvez um punhado de súplicas silenciosas, que gritam pra dentro.

Sou uma interrogação sem porquê, um vazio cheio de ser vazio. 
E dentro, infindáveis desejos de vir à tona, e mesmo aqui, estou alheio.

Ana Beatriz

terça-feira, 8 de novembro de 2011

MEUS FILHOS


Meu desgosto ao criar um texto
É comparado ao de uma mãe que pare um filho morto.
Vejo um cadáver nascer de dentro de mim,
Tão horrível, tão desfigurado, tão medonho
Que sinto aumentar minha afeição por ele.

Outrora tive um sonho
(E sonhos são tão frágeis e se esgarçam tão rápido)
Assim que percebi que mesmo mortas minhas crias eram belas;
Sonhei vê-las crescer,
Ganhar a vida que eu lhes neguei.
Foi só um sonho, bobo como todo sonho,
Mas por um instante jurei ser exeqüível.
Sinto tudo e tudo sinto muito mais por mim.

Queria tanto ver meus filhos perderem-se na vida,
Vê-los fazer as próprias amizades de má influência,
Chorar trancados no quarto ou no banheiro
E um dia depois dissimular o choro com um riso falso.
Queria vê-los padecer de angústia,
Queria vê-los, também, angustiar aos outros,
Quem sabe aos outros também fazer sorrir.
E por fim, vê-los definhar ao tempo de forma natural...
Mas não, eles já saem mortos de dentro de mim,
Me resta o trabalho de fazer o funeral.

Danilo del Monte

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

ROSAS QUE ENGANAM




Um dia ele inclinou-se sobre as rosas
Que decoravam a sala de estar;
Apaixonado, deixou os ideais

E tragou a essência caprichosa.
“Perfume como o que sinto exalar
Nem os mais belos campos tropicais,

Nem as flores do céu são mais cheirosas.”

As rosas eram artificiais.


Danilo del Monte

terça-feira, 1 de novembro de 2011

MEIO INIMIGO



Não se engane,
Por detrás de todo conhecimento há um Mefistófeles.
Cada vez mais forte,
Cada vez mais debochado,
Todo vulto do saber é sombreado
Pelo vulto dos dentes que sorrindo dilaceram a carne.

Não se engane,
Atrás de qualquer luz da percepção
Vive um sorriso enferrujado
E uma risada que marcou história
Sem nunca sequer ter sido ouvida.

Cuidado para não se enganar.
Assim já sabiam os homens que sabiam demais,
E ouviram e beberam da risada,
E apaixonaram-se e cativaram-se com o sorriso,
E aprenderam demais
E morreram sem sorrisos e nem risadas.

Assim aprenderam os homens que sabiam demais,
E por detrás da farsa que é o sorriso humano,
Deixaram caducar a tolerância.



Danilo del Monte