quinta-feira, 13 de dezembro de 2012
MERECEMOS
Hoje eu acordei pedindo o fim de tudo.
Digo, quase tudo, não desejei o fim do mundo
Porque não seria justo que acabássemos assim, sem mais nem menos.
Hoje eu acordei querendo viver o começo da degradação,
Querendo ver a humanidade pelejar em sofrimento.
Notar nos olhos de cada um, um pedaço da culpa.
Hoje eu acordei querendo ver o fim, desde o início,
Do que chamamos condição humana.
Pra que tantos pedidos de desculpa?
Pra que tanta formalidade para pisar sobre alguém?
Toda a nossa vontade de fazer o mal pelas vias do bem,
Pelas vias do mal merece ser destruída.
Por isso hoje eu quero ver a devastação da cidade,
Os saqueadores invadirem nosssa almas e retirarem tudo que sobrou
(e quantos não voltarão de mãos vazias, praguejando contra o céu?)
Hoje eu queria um caos absoluto,
Daqueles que as pessoas se matam por água e por comida.
Um caos que contaminasse as ruas da cidade,
Maltratasse os velhos, as crianças e as mulheres.
Queria ver os homens fugindo dos animais famintos,
E os animais ameaçados pelos homens armados de porrete
E igualmente famintos.
O medo, a miséria, a culpa, a barbaridade, a morte...
Tudo estampado em todos os olhos, em todos os rostos,
Nos que um dia foram belos e nos que já nasceram feios.
Hoje eu queria um descontrole total,
Que assassinatos e espancamentos não pudessem ser levados a tribunais.
Que cédulas de dinheiro só servissem de papel higiênico.
Que casas e carros e roupas já não fossem a identidade de ninguém.
Hoje eu queria que todos nós estivéssemos cegos
De uma cegueira que não atingisse apenas os olhos,
Mas tudo ao que diz respeito à nossa condição.
Queria todos surdos aos pedidos de ajuda, à morte rápida.
Sem olfato e nem paladar que possam repudiar a carne podre, mas nutritiva,
Que havemos de comer e lamber os dedos.
É tempo de ser dito: “Veja
O que estamos fazendo com nós mesmos”.
Mas já estamos todos cegos e não podemos notar o que acontece.
Minha voz já quase não sai, quando acha que vai conseguir, desaparece.
Pra que tantos pedidos de desculpa?
Pra que tanta formalidade para pisar sobre alguém?
Quando vierem matar-me
– peço como quem pede um copo d´água –
Não venha o assassino me pedir licença,
Não me entregue caneta me exigindo assinatura,
Nem tampouco me estipule data e horário para a execução.
Não me dê, sequer, a chance de me desviar do golpe.
Danilo del Monte
segunda-feira, 26 de novembro de 2012
O MONSTRO DA INFÂNCIA
No curto período em que fui criança
Um Monstro insano seguia meus passos
Não tinha rosto e nem tinha voz
Mas detentor que era dos acasos
Mantinha-me cativo em aliança
Membros atados a violentos nós
Um Monstro insano seguia meus passos
Não tinha rosto e nem tinha voz
Mas detentor que era dos acasos
Mantinha-me cativo em aliança
Membros atados a violentos nós
No curto período em que fui criança
– embora inocente, apavorada –
Sentia evoluir no monstro a ânsia
De ver a minha alma castigada
Por eu nutrir uma repugnância
Pela pesada mão idolatrada.
– embora inocente, apavorada –
Sentia evoluir no monstro a ânsia
De ver a minha alma castigada
Por eu nutrir uma repugnância
Pela pesada mão idolatrada.
No curto período em que tive infância
– Pavor de ver meu braço decepado
Minha língua querendo apodrecer –
O monstro, minha imagem e semelhança
Não podia, jamais, ser enganado
Via o que mais ninguém podia ver
Minha língua querendo apodrecer –
O monstro, minha imagem e semelhança
Não podia, jamais, ser enganado
Via o que mais ninguém podia ver
(Como que pode ser tranquila a infância
Se há um deus que pode te julgar
Implacável monstro a te perseguir?
Ele sabe do seu imaginar
Conhece a inocência da criança
O preço que se paga por sorrir)
Implacável monstro a te perseguir?
Ele sabe do seu imaginar
Conhece a inocência da criança
O preço que se paga por sorrir)
Danilo del Monte
*imagem: autor desconhecido (por enquanto).
quarta-feira, 21 de novembro de 2012
PESSOA SEGUNDO SARAMAGO
“Era
um homem que sabia idiomas e fazia versos. Ganhou o pão e o vinho pondo
palavras no lugar de palavras, fez versos como os versos se fazem, isto é,
arrumando palavras de uma certa maneira. Começou por se chamar Fernando, pessoa
como toda a gente. Um dia lembrou-se de anunciar o aparecimento iminente de um
super-Camões, um Camões muito maior do que o antigo, mas, sendo uma criatura
conhecidamente discreta, que soia andar pelos Douradores de gabardina clara,
gravata de lacinho e chapéu sem plumas, não disse que o super-Camões era ele
próprio. Ainda bem. Afinal, um super-Camões não vai além de ser um Camões
maior, e ele estava de reserva para ser Fernando Pessoa, fenômeno nunca antes
visto em Portugal. Naturalmente, a sua vida era feita de dias, e dos dias sabemos
nós que são iguais mas não se repetem, por isso não surpreende que em um
desses, ao passar Fernando diante de um espelho, nele tivesse percebido, de
relance, outra pessoa. Pensou que havia sido mais uma ilusão de óptica, das que
sempre estão a acontecer sem que lhes prestemos atenção, ou que o último copo
de aguardente lhe assentara mal no fígado e na cabeça, mas, à cautela, deu um
passo atrás para confirmar se, como é voz corrente, os espelhos não se enganam
quando mostram. Pelo menos este tinha-se enganado: havia um homem a olhar de
dentro do espelho, e esse homem não era Fernando Pessoa. Era até um pouco mais
baixo, tinha a cara a puxar para o moreno, toda ela rapada. Num movimento
inconsciente, Fernando levou a mão ao lábio superior, depois respirou com
infantil alívio, o bigode estava lá. Muita coisa se pode esperar de figuras que
apareçam nos espelhos, menos que falem. E como estes, Fernando e a imagem que
não era sua, não iriam ficar ali eternamente a olhar-se, Fernando Pessoa disse:
‘Chamo-me Ricardo Reis.’ O outro sorriu, assentiu com a cabeça e desapareceu.
Durante um momento, o espelho ficou vazio, nu, mas logo a seguir outra imagem
surgiu, a de um homem magro, pálido, com aspecto de quem não vai ter muita vida
para gozar. A Fernando pareceu-lhe que este deveria ter sido o primeiro, porém
não fez qualquer comentário, só disse: ‘Chamo-me Alberto Caeiro.’ O outro não
sorriu, acenou apenas, frouxamente, concordando, e foi-se embora. Fernando
Pessoa deixou-se ficar à espera, sempre tinha ouvido dizer que não há dois sem
três. A terceira figura tardou uns segundos, era um homem do tipo daqueles que
têm saúde para dar e vender, com o ar inconfundível de engenheiro diplomado em
Inglaterra. Fernando disse: ‘Chamo-me Álvaro de Campos’, mas desta vez não
esperou que a imagem desaparecesse do espelho, afastou-se ele, provavelmente
cansado de ter sido tantos em tão pouco tempo. Nessa noite, madrugada alta,
Fernando Pessoa acordou a pensar se o tal Álvaro de Campos teria ficado no
espelho. Levantou-se, e o que estava lá era a sua própria cara. Disse então:
‘Chamo-me Bernardo Soares’, e voltou para a cama. Foi depois destes nomes e
alguns mais que Fernando achou que era hora de ser também ele ridículo e
escreveu as cartas de amor mais ridículas do mundo. Quando já ia muito
adiantado nos trabalhos de tradução e de poesia, morreu. Os amigos diziam-lhe
que tinha um grande futuro à sua frente, mas ele não deve ter acreditado, tanto
que decidiu morrer injustamente na flor da idade, aos 47 anos, imagine-se. Um
momento antes de acabar, pediu que lhe dessem os óculos: ‘Dá-me os óculos’,
foram as suas formais e finais palavras. Até hoje nunca ninguém se interessou
por saber para que os quis ele, assim se vêm ignorando ou desprezando as
últimas vontades dos moribundos, mas parece bastante plausível que a sua
intenção fosse olhar-se num espelho para saber quem finalmente lá estava. Não
lhe deu tempo a parca. Aliás, nem espelho havia no quarto. Este Fernando
Pessoas nunca chegou a ter verdadeiramente a certeza de quem era, mas por causa
dessa dúvida é que nós vamos conseguindo saber um pouco mais quem somos.”
Fonte: SARAMAGO, José. Cadernos de Lanzarote. São Paulo:
Companhia das Letras, 1997. pp. 642-644
quinta-feira, 8 de novembro de 2012
DE CIMA DO ALL-STAR
Lembra-se do sorriso visionário que na tua face e na minha
Iluminava as ruas por onde passávamos?
Lembra-se? Havia duas faces e um mesmo sorriso.
Tínhamos vertigens que não eram acompanhadas por nenhum seguidor,
E, como fosse o caso, brincávamos de incompreendidos.
Lembra-se dos discursos adolescentes feitos para ninguém?
Subíamos no próprio tênis all-star e lá de cima se podia ver o mundo todo.
Cada falha, cada pranto, cada repressão, cada problema.
Lembra-se de como eram belos discursos adolescentes com ideias infantis?
Eram ideias infantis faladas em tom adulto,
E o que imaginávamos era a sapiência da velhice transbordada de ensinamentos.
Iluminava as ruas por onde passávamos?
Lembra-se? Havia duas faces e um mesmo sorriso.
Tínhamos vertigens que não eram acompanhadas por nenhum seguidor,
E, como fosse o caso, brincávamos de incompreendidos.
Lembra-se dos discursos adolescentes feitos para ninguém?
Subíamos no próprio tênis all-star e lá de cima se podia ver o mundo todo.
Cada falha, cada pranto, cada repressão, cada problema.
Lembra-se de como eram belos discursos adolescentes com ideias infantis?
Eram ideias infantis faladas em tom adulto,
E o que imaginávamos era a sapiência da velhice transbordada de ensinamentos.
Os discursos hoje estão em outras bocas,
(bocas nem mais belas, nem mais tristes, nem mais eloquentes que as nossas,
bocas exatamente iguais. Bocas visionárias e solitárias. Iguais)
Os sorrisos estão renovados e ainda brincam de incompreendidos,
E nós temos os olhos baixos cravados no próprio sapato de couro.
Tudo o que podia ser visto podia ser mudado, se lembra?
Hoje tudo o que é visto é abraçado vergonhosamente pelas nossas camisas.
Lembra-se da alma que vendemos a um caixeiro viajante
Com a promessa de nos tornarmos fortes?
Hoje nós somos fracos e acabamos por perder a nossa alma.
(bocas nem mais belas, nem mais tristes, nem mais eloquentes que as nossas,
bocas exatamente iguais. Bocas visionárias e solitárias. Iguais)
Os sorrisos estão renovados e ainda brincam de incompreendidos,
E nós temos os olhos baixos cravados no próprio sapato de couro.
Tudo o que podia ser visto podia ser mudado, se lembra?
Hoje tudo o que é visto é abraçado vergonhosamente pelas nossas camisas.
Lembra-se da alma que vendemos a um caixeiro viajante
Com a promessa de nos tornarmos fortes?
Hoje nós somos fracos e acabamos por perder a nossa alma.
Danilo del Monte
terça-feira, 30 de outubro de 2012
ORWELL E O MUNDO EM 1984
“Ele provou que a
literatura política pode ser uma arte”
Paulo Sérgio Pinheiro, Istoé, 24/09/1981
Paulo Sérgio Pinheiro, Istoé, 24/09/1981
SOBRE O AUTOR E O PARALELO COM O MUNDO REAL:
1984, de
George Orwell (pseudônimo de Erick Blair), foi publicado pela primeira vez no ano de 1949, e pode ser
entendido como uma “profecia” pavorosa do autor para os anos futuros. O mundo
traçado, embora exagerado, mantém os pés na realidade de um planeta que acabara
de sair de seu período mais sombrio (a Segunda Guerra), e vislumbra uma divisão
de nações em blocos, que foi impulsionada pela Guerra Fria. No entanto, se no
mundo real as nações mais poderosas se odiavam em diplomacia, em 1984 a guerra é brutal é constante,
cabendo muitas vezes reflexão se ela deveras acontecia, ou se tudo não passava
de uma espécie manipulação, onde o cabia ao Estado, para efeito de controle,
instaurar uma permanente ideia de conflitos onde jamais se teria uma derrota.
Como não existe no mundo obra que não traga à luz a
ideologia de seu autor, 1984 explicita
a visão política de George Orwell; ou melhor, reforça, pois está já havia
ficado clara em livros anteriores. Este é, sobretudo, uma crítica profunda ao
totalitarismo, não se resumindo ao comunismo, como é constante se pensar,
embora o que se pode vislumbrar é que a Oceania possui elementos de governo
característicos da esquerda.
O MUNDO POLÍTICO EM 1984:
Lestásia, Eurásia e Ocêania compõem as três potências políticas do planeta.
Como pelo nome é de se supor e depois explicado por Emanuel Goldentein, inimigo público número 1, Lestásia é o bloco de
países situados ao leste da Ásia; Eurásia, a união entre os Europeus
continentais e os países mais ocidentais da Ásia; e Oceânia o bloco formado
pelos países da América e pela Ilha Britânica, que se chama agora Pista nº 1,
tendo Londres como capital.
A OCEANIA E SEU
SISTEMA POLÍTICO:
“O Grande Irmão zela por ti” é a frase que se vê nos cartazes que estão em
todo lugar. Um homem de aparência calma, bigodes escuros e espessos que
escondem um sorriso enigmático fita nesses cartazes a todos os habitantes de Londres, da Pista nº 1 e da Oceania. O Grande Irmão é o líder do partido desde a
revolução, desde a vitória do Ingsoc, que em antiglíngua, ou seja, na língua antiga (ou inglês tradicional)
significa Socialismo Inglês. Conta-se que antes da Revolução os capitalistas
andavam por Londres de cartolas e ternos ilustres, e que oprimiam o povo com
suas injustiças e trabalho escravo. A visão de que o Partido é a luz em um
mundo de trevas, e que não há vida fora do Ingsoc
é incansavelmente difundida pelo Estado e acaba por convencer os cidadão,
todos membros do Partido, Interno ou Externo, com exceção dos Proles.
A Oceania é governada basicamente por quatro ministérios,
Miniver, Minimor, Minipaz e Minifarto, em anctilíngua, respectivamente,
Ministério da Verdade, que cuida da mentira; Ministério do Amor, responsável
pelo ódio; Ministério da Paz, que controla a guerra; e Ministério da Fartura,
responsável pela fome. Apenas aqueles que cometeram crimes políticos, ou crimidéia e foram levados para os porões
do Ministério do Amor podem dizer o que há dentro daquela pavorosa pirâmide que
de longe se avista; só eles podem, mas não dizem, pois uma vez lá dentro,
esquecem-se da antiga ideologia que o fizeram praticar o crimidéia e saem curados,
agradecendo ao Partido pela percepção do que antes era obscuro. Em outras
palavras, aprendem a amar o Grande Irmão.
Após qualquer Revolução, qualquer golpe de Estado, qualquer tomada de poder, há
sempre que se manter sob o controle da situação para que não se inicie uma
contrarrevolução. Este é o princípio básico de todo e qualquer regime
totalitário já instalado no planeta, e a razão por que seus habitantes de uma
forma ou de outra, são controlados. Na Oceania este controle é levado aos
extremos, e tudo é feito para que seus habitantes amem o Grande Irmão. A vida
pode ser difícil, mas antes da revolução era pior; pode ser sofrida, mas antes
da revolução era pior; pode ser miserável e triste, mas antes da revolução era
pior, e para que ninguém conteste que a Revolução, O Grande irmão e o Insoc
vieram para iluminar aquela terra e dar paz aos seus cidadãos, a vigia é
ininterrupta através de um Controle da Realidade, quem um novilíngua possui um termo específico e que é a base da sustentação
do partido: duplipensar.
Os meios de controle da Oceania para com os seus cidadãos
ultrapassam os limites da eficácia. Os equipamentos e os métodos que estão por
trás do duplipensar são um dos
segredos para o progresso do Estado. Vinte e quatro horas por dia homens e
mulheres são vigiados por um aparelho denominado tele tela, que é uma espécie de televisão que nunca é desligada,
que informa sobre as novas sempre positivas do Estado, suas vitórias das
frentes te batalha na guerra contra a Eurásia; ou que a produção da Oceania
tivera superávit, ou que O Grande Irmão tinha um recado importante para passar.
Em todos os lugares, em todas as casas e estabelecimentos havia uma tele tela, de câmera e microfones
ligados para captar qualquer sinal de subversão.
A transformação da língua é outra
ferramenta eficaz de controle. A passagem de antilíngua (ou Inglês normal) para Novilíngua consiste em reduzir o dicionário, emendar e eliminar
palavras, sinônimos, transformar a comunicação na mais básica possível. Como
diz um dos criadores do dicionário em novilíngua, em breve o crimidéia será
impossível porque não haverá palavra para o expressar.
A educação das crianças é um dos
pilares fundamentais. Elas, que nasceram dentro da revolução e dentro dos
princípios do Ingsoc foram educadas
são as que mais juram lealdade ao Grande Irmão e odeiam com todas as suas
fibras a Emanuel Goldenstein, à Eurásia, aos subversivos ou a qualquer outro
inimigo do Partido. São as crianças que vigiam os pais a procura de qualquer
ato, uma crimidéia qualquer para os
denunciar, e os pais, ao saberem que foram denunciados pelos próprios filhos,
orgulham-se destes pela lealdade ao Grande Irmão, e por os terem salvos da
ideologia contrária.
No entanto, dentre todas as
ferramentas usadas, dentro todos os métodos, nada é tão eficaz e necessário
quanto o trabalho feito no Miniver. Ali
se caracteriza da melhor forma o Duplipensar,
é ali que a realidade é alterada dia após dia de acordo com a vontade e a
necessidade do Partido. Se alguém, algum subversivo, algum criminoso fosse pego
pelo Partido, pela tão temível Polícia do Pensamento, era simplesmente vaporizado. O termo é próprio, pois não
se resume a simples execução, mas a um desaparecimento total do indivíduo. Seu
corpo e suas ideias sumiam, assim como sumiam todos os registros que
contivessem seu nome, e assim jornais antigos, fotografias, revistas e outros
documentos eram alterados dia a dia, de modo que aquele indivíduo não havia
desaparecido, mas sim nunca antes existido. Bem como as guerras, se amanhã a
Oceania entrar em guerra com a Lestásia e não mais com a Eurásia, os documentos
são alterados, bem como os discursos, e a Oceania nunca esteve em guerra com a
Eurásia. Nunca.
Assim fica a população, jamais
contesta o que lhe é dito, e não por medo, mas sim porque acredita fielmente no
que é passado. Se o Grande Irmão diz que vivemos melhor, o Grande Irmão sabe.
Se o partido afirma que nunca estivemos em guerra com a Eurásia e que aquela
homem nunca existira, o Partido sabe. Os anúncios dados pela tele tela serviam para inflar os egos dos
camaradas, e se de manhã se dizia que a produção de chocolates fora maior do
que a do ano anterior, é certo que a tarde se diria que seria baixada a ração
de chocolate de todos; mas ninguém atinava para a contradição. O duplipensar controlava a todos, dominava
as mentes com cada vez menos palavras, cada vez menos ideia e cada vez menos
perigo para o partido, mas como toda regra há exceção e todo sistema possui uma
falha, existiam homens como Winston Smith.
ENREDO E PERSONAGENS (SPOILLER):
Winston Smith era um membro do partido externo, vivia como todos os outros
camaradas uma vida pacata e de mentiras. Trabalhava no Ministério da Verdade
alterando os documentos necessários, refazendo a história, exercendo o duplipensar. No entanto, os membros do
Partido Externo não tinha noção do que acontecia, os trabalhos chegavam à
Winston com a devida diretriz de alteração, mas o motivo dito era simplesmente
“correção de uma informação errada”.
Winston não tinha sequer certeza
de que o ano era 1984. Devia ser. Na monotonia de todo dia perde-se a noção do
tempo. Mas diziam que era 1984, então por que não crer? Dentre os camaradas da
Oceania, destacava-se por uma perspicácia rara, embora sempre escondida porque
em toda parte poderiam haver policiais da Polícia do Pensamento, microfones
escondidos ou uma tele tela. Indagava
dentro de si se deveras a Oceania estaria melhor do que no tempo das cartolas,
se o Grande Irmão realmente existia, se envelhecia, e julgava lembrar que antes
da Eurásia, a Oceania estava em guerra com a Lestásia, e antes desta novamente Eurásia.
Parecia ser o único com tais reflexões, o único a perceber que os anúncios
diziam que a produção de sapatos bateu recorde, mas que a população continuava
descalça. Se pudesse fazer algo, fazer as pessoas entenderem e todo o sistema
mudar...
Dentro da repartição que
trabalhava existia um homem, a julgar de escalão superior, chamado O’Brien, com
quem Winston uma vez sonhara que era também uma ovelha desgarrada do rebanho do Ingsoc, um homem com quem pudesse contar
num mundo onde não havia trevas. A prudência e o medo impossibilitavam a
aproximação dos dois, O’Brien podia ser um membro do Partido Interno, ou um
elemento da Polícia do Pensamento, quem garante? Só o que Winston tinha de
O’Brien era um sonho e um olhar, coisa muito vaga e sem nenhuma relevância.
Júlia aparece na história como a maior desconfiança de Winston Smith.
Ele a julgara a princípio um membro do Partido Interno encarregada de
observá-lo. Pensou em matá-la com um paralelepípedo na cabeça. Um dia, quando
ambos caminhavam em sentidos opostos e na mesma direção, em um dos corredores
do Miniver, Júlia tropeça e cai, o
que obriga Winston Smith a ajudá-la. Ela agradece, vai embora e Winston percebe
que há um pequeno pedaço de papel em sua mão. Como abri-lo? Havia tele telas por todo lugar. Foi à sua
repartição, sentou-se no posto de trabalho e puxou o papel como fosse parte de
suas tarefas. Quando o abriu, muito rápido, pôde ler: EU TE AMO. E jogou o papel no tubo
pneumático que incinerava as coisas.
Winston e Júlia conseguiram se
aproximar graças à esperteza dela. Se Winston tinha perspicácia, ela tina
malandragem e conhecia as rotas para escapar dos microfones e das tele telas, afinal, o sexo era também
sujeira aos olhos do Partido, permitido apenas aos casados e não como forma de
prazer, mas de cumprir o dever para com o
partido. No entanto, a rebeldia de Júlia era da cintura para baixo, e nem
mesmo ela se lembrava de que antes da Eurásia, a Oceania estava em guerra com e
Lestásia, e antes com a Eurásia, nem mesmo atinava para as manipulações do Partido. Apenas vivia. Winston pôde pouco a pouco introduzir na cabeça de Júlia as ideias e
percepções que tinha, e em um de seus encontros, falou à ela sobre O’Brien, o
homem que julgava poder contar, um homem a se encontrar onde não teria trevas.
Pálidos de medo, mas com a coragem
que as ideias fixas fazem nascer no indivíduo, Winston e Julia vão ter com
O’Brien, e este lhes entende, e para surpresa do casal, desliga a tele tela.
O’Brien expõe que aquele é um recurso permitido somente aos membros do Partido
Interno, e que embora faça parte dele, está ao lado de Emanuel Goldenstein para
mudar o sistema. O Livro de Goldeinstein é dado á Winston por O’Brien, pois
nele está a verdade, nele está a luz e o conhecimento do funcionamento do
Partido e como o combater. O exemplar é único.
O erro fatal do casal está no aluguel de um pequeno quarto no bairro dos proles, onde raramente havia policias, porque afinal, como
se dizia, os proles não eram gente. E enquanto Winston lia o livro em voz alta
e Julia dormia, ambos nus, uma voz estridente e metálica ecoa por detrás de um
quadro. Ambos sobressaltam-se, o quadro cai e ali se revela uma tele
tela. O dono do quarto em seguida sobe correndo, posta-se perante os dois,
e o ancião simpático dono da mercearia se revela, para espanto de Winston que
nunca na vida havia visto, um membro da Polícia do Pensamento. Winston e Júlia
são levados e não mais haveriam de se encontrar.
Winston está em algum lugar sem
janelas que julga ser um dos porões do Ministério do Amor. Ali ele é
interrogado e ali começa o seu processo de cura.
Quem interroga e tortura Winston é O’Brien, e ali tudo fica as claras. A
manipulação, o jogo de interesse, o como e o por quê, quando nas palavras de
O’Brien Winston percebe de que o Partido quer o poder simplesmente porque quer.
Ninguém ama, ninguém odeia o poder, apenas deseja tê-lo. No entanto, para que o
torturado se esqueça de tudo o que viu, de tudo o que viveu e idealizou, o
processo é de choque físico e psicológico, e sendo Winston um caso extremado, é
levado à sala 101, onde há a pior coisa do mundo.
Winston Smith e Júlia se encontram
muito tempo depois, casualmente, em uma lanchonete. Sentam-se um de frente para
o outro, mas mal se reconhecem. Em uníssono, admitem: EU TE TRAÍ. Mas isso já
não tem importância, Winston está agora preocupado com a guerra contra a
Eurásia, a guerra que sempre foi contra a Eurásia e com os caminhos que a
Oceania está tomando, orgulhoso de pertencer àquela nação de camaradas e de
estar dentro do Ingsoc. Winston Smith
aprendera a amar o Grande Irmão.
Danilo del Monte
·
Curiosidade:
O universo de 1984 onde as
pessoas são vigiadas vinte e quatro horas por dia e postas à prova sua lealdade
ao Grande Irmão inspirou o programa de televisão Big Brother.
segunda-feira, 15 de outubro de 2012
PORTA DE SAÍDA
Por que nós precisamos demonstrar força o tempo inteiro?
Quem disse que o cansaço é a falta do indivíduo?
Não, o cansaço vem de fora, o desânimo, dos outros,
A desesperança todos os dias nasce com o sol,
E todos os dias eu me escondo nos primeiros raios da manhã.
Eu reivindico os meus direitos de fraqueza,
Não quero abaixar do soco, mas sair da briga,
Não quero apanhar por achar bater desnecessário.
Não quero sair de lugar nenhum para que outros possam entrar.
Quem disse que o cansaço é a falta do indivíduo?
Não, o cansaço vem de fora, o desânimo, dos outros,
A desesperança todos os dias nasce com o sol,
E todos os dias eu me escondo nos primeiros raios da manhã.
Eu reivindico os meus direitos de fraqueza,
Não quero abaixar do soco, mas sair da briga,
Não quero apanhar por achar bater desnecessário.
Não quero sair de lugar nenhum para que outros possam entrar.
Eu reivindico os meus direitos de fraqueza
E peço para que a humanidade pare de se fingir.
Eu não quero mais levantar desse lugar,
Me desenrolar desses grossos panos,
Erguer a cabeça e mostrar a cara limpa e brilhante. Não...
Eu quero que todos saibam que não me importo mais,
Que o meu rosto desfigurado é o espelho de todos nós,
Que na minha face desiludida está a percepção da natureza.
Eu quero fazer reconhecida a minha fraqueza,
Venerado o meus desprezo pelo mundo
E acima de tudo, quero fazer reconhecida essa culpa.
E peço para que a humanidade pare de se fingir.
Eu não quero mais levantar desse lugar,
Me desenrolar desses grossos panos,
Erguer a cabeça e mostrar a cara limpa e brilhante. Não...
Eu quero que todos saibam que não me importo mais,
Que o meu rosto desfigurado é o espelho de todos nós,
Que na minha face desiludida está a percepção da natureza.
Eu quero fazer reconhecida a minha fraqueza,
Venerado o meus desprezo pelo mundo
E acima de tudo, quero fazer reconhecida essa culpa.
Se a massa corre sem saber pra onde,
Por que diabo eu preciso correr junto?
Eu estanquei na largada e daqui não dou mais um passo,
Eu só observo a corrida que não termina,
Vejo de longe os competidores cansados, mas ainda correndo,
Observo a exaustão negada de cada um
E me deito no asfalto para pensar que a corrida tem destino,
E que nós (corredores e desistentes) vamos para o mesmo pódio fedorento.
Por que diabo eu preciso correr junto?
Eu estanquei na largada e daqui não dou mais um passo,
Eu só observo a corrida que não termina,
Vejo de longe os competidores cansados, mas ainda correndo,
Observo a exaustão negada de cada um
E me deito no asfalto para pensar que a corrida tem destino,
E que nós (corredores e desistentes) vamos para o mesmo pódio fedorento.
Eu não quero aparentar ser forte como uma criança.
Se não me escondo do castigo, não é por não sentir as pancadas,
Mas porque o globo não tem porta de saída.
Porta de saída... existe uma
Situada no fim do mais escuro corredor.
Eu, que já estou dentro da casa, nunca me atrevi a abrir a porta,
Sendo honesto, nunca a reparei. Gesto de força ou fraqueza?
A porta... quantos recados eu daria saindo pela porta
Que na verdade não é dos fundos, mas da frente,
É a única maneira de sair sem ser empurrado
– e quanta coisa no mundo nos pode empurrar... –
É a única maneira de mandar nas próprias pernas.
Se não me escondo do castigo, não é por não sentir as pancadas,
Mas porque o globo não tem porta de saída.
Porta de saída... existe uma
Situada no fim do mais escuro corredor.
Eu, que já estou dentro da casa, nunca me atrevi a abrir a porta,
Sendo honesto, nunca a reparei. Gesto de força ou fraqueza?
A porta... quantos recados eu daria saindo pela porta
Que na verdade não é dos fundos, mas da frente,
É a única maneira de sair sem ser empurrado
– e quanta coisa no mundo nos pode empurrar... –
É a única maneira de mandar nas próprias pernas.
A porta. A solução de todos os males.
Deixem-me andar, cansado como estou,
Um dia eu giro a maçaneta.
Deixem-me andar, cansado como estou,
Um dia eu giro a maçaneta.
Danilo del Monte
terça-feira, 9 de outubro de 2012
TODAS AS COISAS
Passo a passo,
Pé ante pé,
Palavra por palavra,
Montando frases,
Montando textos
Que transcrevo e transformo em meus.
Uma ideia que ganhou vida,
Uma sombra que ganhou rosto,
Um rosto que me levou o sono.
Pé ante pé,
Palavra por palavra,
Montando frases,
Montando textos
Que transcrevo e transformo em meus.
Uma ideia que ganhou vida,
Uma sombra que ganhou rosto,
Um rosto que me levou o sono.
Demorou pra vir,
Mas quando veio, mexeu nas gavetas,
Nos armários,
Nos livros,
Nos discos,
Na cozinha,
Revirou as camas,
Bagunçou as estações do rádio,
Arrastou todos os móveis da casa.
Mas quando veio, mexeu nas gavetas,
Nos armários,
Nos livros,
Nos discos,
Na cozinha,
Revirou as camas,
Bagunçou as estações do rádio,
Arrastou todos os móveis da casa.
Demorou pra vir,
E quando veio não justificou demora,
Não desculpou-se pelo atraso,
Não culpou o trânsito,
O sono,
Não culpou a rotina,
O despertador que não toca, não culpou.
Demorou pra vir,
E quando veio, apenas sorriu.
Quase não falou
E sorriu...
E quando veio não justificou demora,
Não desculpou-se pelo atraso,
Não culpou o trânsito,
O sono,
Não culpou a rotina,
O despertador que não toca, não culpou.
Demorou pra vir,
E quando veio, apenas sorriu.
Quase não falou
E sorriu...
Já não arrumo mais as gavetas,
Já não tento pôr ordem no armário,
Os talheres da cozinha, já não arrumo mais.
Não faço a cama,
Não faço sala,
Não organizo os livros nem os discos.
Já não faço mais...
Apenas sorrio.
Quase não falo
E sorrio.
Já não tento pôr ordem no armário,
Os talheres da cozinha, já não arrumo mais.
Não faço a cama,
Não faço sala,
Não organizo os livros nem os discos.
Já não faço mais...
Apenas sorrio.
Quase não falo
E sorrio.
Danilo del Monte
domingo, 30 de setembro de 2012
DAS FARSAS
Das farsas, creio, sou a mais sincera,
Contribuo para ser desmascarado.
Finjo-me sensato ao ser apaixonado,
Tinjo-me homem quando sou quimera.
Contribuo para ser desmascarado.
Finjo-me sensato ao ser apaixonado,
Tinjo-me homem quando sou quimera.
Furtivo, tenho um coração que espera
Paciente ao bater descompassado,
E antes mesmo de estar sentenciado
Enternece com as cores da aquarela.
Paciente ao bater descompassado,
E antes mesmo de estar sentenciado
Enternece com as cores da aquarela.
Só mesmo cego pra fugir das cores.
Só mesmo surdo pra fugir das notas.
Meus olhos, que mentiam sobre as flores,
Só mesmo surdo pra fugir das notas.
Meus olhos, que mentiam sobre as flores,
Desentendem o que uma tal denota.
Essa tal que escancara meus temores,
À qual minha visão é tão devota.
Essa tal que escancara meus temores,
À qual minha visão é tão devota.
quinta-feira, 20 de setembro de 2012
O SÉTIMO CÍRCULO DO INFERNO
No centro de uma sombria floresta
Árvores que gemem pela dor são companheiras.
Quem, por curiosidade passa e me arranca um galho
Não sabe a dor que me produz a amputação,
E quem, chorando em Malebolge olha para cima,
Não pode ver mai do que raízes violentas guerreando sob o solo.
Árvores que gemem pela dor são companheiras.
Quem, por curiosidade passa e me arranca um galho
Não sabe a dor que me produz a amputação,
E quem, chorando em Malebolge olha para cima,
Não pode ver mai do que raízes violentas guerreando sob o solo.
No centro de uma sombria floresta estou plantado.
Cresço rapidamente para que lenhadores me ataquem,
Minhas folhas caem secas antes do outono
E a primavera é o sinal de que o açoite está por vir.
Meu rosto é disforme pela dor e pelo crescimento irregular,
Meu corpo, exausto de se arrepender, um caule perturbado
E meus braços se erguem sem esperança de achar a superfície.
Cresço rapidamente para que lenhadores me ataquem,
Minhas folhas caem secas antes do outono
E a primavera é o sinal de que o açoite está por vir.
Meu rosto é disforme pela dor e pelo crescimento irregular,
Meu corpo, exausto de se arrepender, um caule perturbado
E meus braços se erguem sem esperança de achar a superfície.
Todos têm a ilusão de defenderem-se dos castigos,
Todos correm ou cruzam os braços na hora da pancada – eu não.
Eu somente olho e aguardo curioso a hora do flagelo.
No centro de uma sombria floresta, acima de Malebolge,
Tudo o que me é dado fazer é chorar, é gemer, é urrar.
E no final de tudo, quando todos forem contemplados com seus corpos,
Quando todos tiverem de volta a sua carne lavada pelo sangue,
Eu, no sétimo círculo do Inferno, continuarei árvore,
Continuarei crescendo, quebrando, sendo cortado. Não reclamo,
Afinal, não seria justo receber na morte o que em vida recusei.
Todos correm ou cruzam os braços na hora da pancada – eu não.
Eu somente olho e aguardo curioso a hora do flagelo.
No centro de uma sombria floresta, acima de Malebolge,
Tudo o que me é dado fazer é chorar, é gemer, é urrar.
E no final de tudo, quando todos forem contemplados com seus corpos,
Quando todos tiverem de volta a sua carne lavada pelo sangue,
Eu, no sétimo círculo do Inferno, continuarei árvore,
Continuarei crescendo, quebrando, sendo cortado. Não reclamo,
Afinal, não seria justo receber na morte o que em vida recusei.
Danilo del Monte
quinta-feira, 13 de setembro de 2012
SENTIDO QUE NÃO SE BUSCA
Não se atreva a perguntar por quê.
Aguente, que um dia passa rápido
E é tão suave quando o anoitecer,
E embora após um dia outro sempre vem,
Esse novo passa rápido também.
Aguente, que um dia passa rápido
E é tão suave quando o anoitecer,
E embora após um dia outro sempre vem,
Esse novo passa rápido também.
Acorde, lave o rosto e corra,
Mas não se atreva a perguntar pra quê.
O sentido de tudo se esconde
Precisamente para não te machucar,
Justamente para não te ofender,
Portanto corra, mas não queira perguntar.
Mas não se atreva a perguntar pra quê.
O sentido de tudo se esconde
Precisamente para não te machucar,
Justamente para não te ofender,
Portanto corra, mas não queira perguntar.
Não se atreva a perguntar o quê.
Dizem que além há um sentido,
Dizem que além há algo a se fazer,
Mas não vás tu querer enlouquecer,
Portanto apenas faça, mas jamais pergunte,
- Sequer imagine – o quê.
Dizem que além há um sentido,
Dizem que além há algo a se fazer,
Mas não vás tu querer enlouquecer,
Portanto apenas faça, mas jamais pergunte,
- Sequer imagine – o quê.
Danilo del Monte
terça-feira, 4 de setembro de 2012
ELE NÃO REAGE MAIS
– Veja, parece que cansou de existir.
Cansei! Cansei? Não sei,
Mas é certo que já não reajo mais.
Hoje tudo o que me vem, deixo que se vá,
E tudo o que se vai já não me deixa mais recordação.
Eu acho que me cansei de existir,
Ou a própria existência se cansou de mim.
Cansei! Cansei? Não sei,
Mas é certo que já não reajo mais.
Hoje tudo o que me vem, deixo que se vá,
E tudo o que se vai já não me deixa mais recordação.
Eu acho que me cansei de existir,
Ou a própria existência se cansou de mim.
– O que fazemos nós aqui, ele não reage mais?
Lembro do tempo em que novas feridas se abriam em mim,
Meu corpo era o mapa de uma catástrofe física,
Minha cabeça era o moto-contínuo desse mal.
Hoje vivo uma calmaria sem fartura,
Não há mais brigas na mesa de jantar, não há mais,
Assim como também não há comida;
E se não me rebelo contra a fome que me enterra
É porque já não reajo mais.
Lembro do tempo em que novas feridas se abriam em mim,
Meu corpo era o mapa de uma catástrofe física,
Minha cabeça era o moto-contínuo desse mal.
Hoje vivo uma calmaria sem fartura,
Não há mais brigas na mesa de jantar, não há mais,
Assim como também não há comida;
E se não me rebelo contra a fome que me enterra
É porque já não reajo mais.
Meu inferno é o fumo que risca o ar,
Meu abismo, a espuma que traça a onda.
Beleza simples que existe, mas que se exauriu.
Ouço batidas em minha porta,
Talvez velhos conhecidos querendo entrar;
Ouço cochicharem o Amor, a Amizade, o Ódio e o Rancor,
E ouvindo cada um já não os reconheço mais.
Nem mesmo a Saudade, companheira de toda a minha vida
– de todos, a mais íntima que há –
Já não me é capaz de levantar desse sofá.
As sombras desaparecem sob a porta,
Deixo que se vão e ainda as ouça comentar:
– Vamos embora, ele não reage mais.
Meu abismo, a espuma que traça a onda.
Beleza simples que existe, mas que se exauriu.
Ouço batidas em minha porta,
Talvez velhos conhecidos querendo entrar;
Ouço cochicharem o Amor, a Amizade, o Ódio e o Rancor,
E ouvindo cada um já não os reconheço mais.
Nem mesmo a Saudade, companheira de toda a minha vida
– de todos, a mais íntima que há –
Já não me é capaz de levantar desse sofá.
As sombras desaparecem sob a porta,
Deixo que se vão e ainda as ouça comentar:
– Vamos embora, ele não reage mais.
Danilo del Monte
sábado, 25 de agosto de 2012
MEU ROSTO E TUA BOTA
Está fedendo esgoto a tua bota.
Foi podre a tua estrada até aqui
E morta está a grama em que pisou.
Tire já da minha cara a sua bota.
O cheiro de carniça eu já senti,
Deitei na grama que você matou.
N’último passo você se atolou.
Estou longe te vendo sucumbir.
Danilo del Monte
segunda-feira, 6 de agosto de 2012
A INSUPORTÁVEL SENSAÇÃO DA PAZ
Insuportável é a sensação da tranqüilidade.
O desespero não me oprime mais do que a calma,
A paz não me acalma mais do que a guerra,
E a guerra é feita quando o transtorno pacífico é insuportável.
Perdi meu medo. Ganhei meu sono.
Perdi o combustível que me garantia a vida.
Recebi num golpe a calma brisa que enlouquece o homem,
Suave e cheia de dor, como o vento que sopra da Cataluña.
Resta em mim um alívio muito distante de me contentar.
Das sombras que me perseguem
A mais bela parece ter ficado para trás.
Não sinto mais os seus sussurros que ameaçam,
Nem os golpes direcionados ao peito. Não sinto mais.
Estou mais forte, da forma com não queria.
Perdi o medo. Ganhei meu sono;
E estou na insuportável sensação de paz.
Danilo del Monte
* imagem: fotografia de Amelia Graphy
* nota : Nem sempre é fácil encontrar imagens que combinem com o texto, ok?!
terça-feira, 24 de julho de 2012
APENAS MÚSICA
Assim como eram os cogumelos para Alice é a música para mim,
Uma me faz crescer e outra me diminui
Uma me dá coragem e outra me reprime,
Uma me faz crescer e outra me diminui
Uma me dá coragem e outra me reprime,
Uma me faz me esconder e outra me dá força para planejar e agir.
É assim que a música participa da minha vida,
Criando um vai e vem, um sobe e desce,
Um turbilhão de sentimentos que não me dão certeza de nada,
Mas me mostram que a vida é feita de emoções...
E ainda tem muito por vir!
É assim que a música participa da minha vida,
Criando um vai e vem, um sobe e desce,
Um turbilhão de sentimentos que não me dão certeza de nada,
Mas me mostram que a vida é feita de emoções...
E ainda tem muito por vir!
Leandro M. Mendes
sexta-feira, 20 de julho de 2012
PICASSOS QUE MOVIAM-SE POR LONDRES
A carta que segue transcrita
abaixo não foi direcionada a ninguém, trata-se de um documento parte de um
romance. Para ser mais preciso, QB VII, de Leon Uris, ambientado no complicado
cenário europeu do pós Segunda Guerra. Uma carta dentro de um romance talvez
não tenha conteúdo histórico, mas em muitos casos ilustra e aguça o nosso
entendimento sobre um determinado período, é o caso das linhas confusas e
assustadas que seguem mais abaixo.
No enredo da história, Angela
Kelno, esposa do médico Dr Adan Kelno, polonês e ex prisioneiro de guerra nazista no campo de concentração de Jadwiga, que fugindo de acusações sobre cirurgias experimentais enquanto prisioneiro, muda-se com a esposa para Sarawak, na Malásia, onde passa
quinze anos. Sarawak podia parecer um pedaço de terra pertencente a outro planeta,
no entanto, foi o retorno a Inglaterra, depois de quinze anos, no início da
década de 60, que realmente abalou a personagem, como um pedaço de terra
repleto de gente pertencente a outra galáxia, e frente aos Picassos que
moviam-se por Londres sofreu do mesmo espasmo, do mesmo choque cultural que
sofreu Antony Burgess, que viu, sentiu, cheirou, relatou, mas provavelmente não
entendeu.
No princípio tudo parecia como sempre,
quando saltamos em Southampton. Penso que chorei durante toda a viagem para
Londres. A cada quilômetro do caminho eu lembrava alguma coisa e minha tensão
aumentava. Por fim chegamos. Minha primeira impressão foi a de que nada mudara
em quinze anos.
Sim, havia alguns novos edifícios de
apartamentos e uma nova estrada de duas vias levando a Londres, e ainda alguns
prédios ultramodernos, principalmente no centro da cidade, onde as bombas
haviam destruído tudo. Mas o antigo fora preservado. O palácio, a catedral,
Piccadilly, Marble, Arch e a Bond Street, nada disso havia mudado.
Quando vi pela primeira vez aqueles jovens,
foi-me impossível relacioná-los. Como se aquilo não fosse realmente Londres.
Gente estranha de um mundo desconhecido para mim havia sido transplantada para
a cidade. Alguma estranha revolução convulsiva acontecera. Sabe? Reconhece-se
isto rapidamente na Inglaterra. Tudo era tão tranqüilo antes.
E olhe que fui enfermeira durante trinta
anos, e portanto não me choco com facilidade. Isto sobre a nudez nas ruas. Em
Sarawak a nudez acompanhava o calor e a cor dos nativos. Era tolice querer
equacionar aquela gente com as pálidas figuras das jovens inglesas,na fria e
calma Londres.
E os hábitos? Em Sarawak eles se baseavam
nas tradições e no clima, mas aqui não tinham sentido algum. As botas altas de
couro só faziam lembrar os sadistas dos bordéis franceses do século XVII, com
seus chicotes terríveis. E as coxas brancas, azuladas de frio, a bainha do
vestido cobrindo apenas as nádegas. O que nós estamos criando é uma geração de
traseiros gelados e a futura história inglesa das hemorróidas. O mais ridículo
de tudo são as imitações ordinárias de peles que nem chegam a cobrir-lhes os
fundilhos. Com suas pernas finas e brancas saindo de dentro daqueles horrendos
embrulhos cor-de-rosa e lilás, elas se parecem a ovos marcianos prestes a se
abrir.
Em Sarawak, até o mais o mais primitivo iban
penteia e prende o cabelo decentemente. A
tentativa deliberada de desmazelo e enfeamento parece ser uma espécie de
protesto contra a geração antiga. No entanto, querendo romper com o passado e
proclamar sua individualidade, todos agora parecem saídos de uma única
matriz.Os rapazes parecem meninas e as meninas são incrivelmente sem graça.
Talvez queiram parecer feias por se sentirem feias e se disfarcem para não
serem identificadas pelo sexo. Querem que tudo se torne absolutamente neutro.
As roupas extravagantes dos homens, calças
com boca de sino, fitas, jóias falsas e veludo, me parecem gritos de socorro.
Adam conta que na clínica acontecem coisas
que indicam um colapso total dos antigos valores morais. Eles confundem
liberdade sexual com capacidade de dar e receber amor. E o mais triste de tudo
é a ruptura da família. Adam me disse que o número de meninas grávidas atinge a
uma porcentagem de cinco a seis por cento e a estatística sobre barbitúricos e
uso de drogas é assustadora. Mais uma vez isto parece indicar uma necessidade
de fugir para um mundo de fantasia, como os ibans costumam fazer nos tempos de tensão.
Não pude acreditar quando ouvi aquela
música. Adam me disse que há casos de danos permanentes de audição. A poesia é
distorcida e há uso de pornografia nas letras, que são menos coerentes de que
as dos cantores ibans. O tom monótono
e os recursos elétricos são tentativas adicionais de sufocar a realidade. E a
dança parece uma exibição de loucos.
Isto será realmente Londres?
Tudo o que eu aprendi está sendo
ridicularizado e não me parece que haja alguma coisa nova para substituir o que
foi destruído. O pior de tudo é que esses homens não são felizes. Têm
pensamentos abstratos sobre amor, bondade e paz, mas querem os benefícios da
vida sem trabalho. Eles nos ridicularizam, mas nós os sustentamos. Não são
muito leais uns com os outros e, se bem que a liberdade sexual seja amplamente
divulgada, eles não conhecem o significado de ternura e de uma relação
permanente.
Será que tudo isso pôde acontecer em quinze
anos?
O desmoronamento de centenas de anos de
civilização e tradição. Uma selva de barulhos estranhos e costumes diferentes.
Só que o povo não é tão feliz quanto os ibans. Não há alegria, só desespero.
Angela Kelno
(personagem de QB VII – LEON URIS)
(personagem de QB VII – LEON URIS)
terça-feira, 10 de julho de 2012
UM HOMEM NÃO CHORA
Na calçada de frente para o bar um homem chorava.
As lágrimas que escorriam dos olhos paravam na barba
Grande, emaranhada e grisalha,
O que lhe dava a aparência de um mendigo que chora de pobreza
Ou de um sábio que chora por uma desilusão filosófica
(poderia ser os dois, visto que estava em frente ao bar).
Porém, não vi pobreza em seu rosto, e nem vi sabedoria.
Não vi copos ao seu redor. Não vi amigos.
Não vi o descaso no rosto de quem passava em frente.
Não vi ou ouvi risos do público. Não vi público.
Não vi nada dessas coisas que os poetas veem.
Vi apenas um homem de barba grande, emaranhada,
Que chorava na calçada de frente para o bar.
Um homem não chora!
Mas aquele senhor chorava e sem dúvida era um homem.
Um homem não chora, e é justamente essa máxima
Que torna o choro do homem o pranto mais triste.
As mulheres têm licença para chorar; e as crianças, o dever,
Mas um homem de barba grande, emaranhada e grisalha,
Sentado na calçada de frente para o bar não pode chorar.
Eu, fascinado, não quis imaginar razões para o que via,
Todo motivo é nobre quando se pretende prantear.
Mas que monstro existe no soluçar do homem
A ponto de haver uma moral proibição que o impede de chorar?
Descobri quando passava de frente para o bar
E vi mais do que tristeza em seu lacrimejar.
Ali havia desesperança, havia melancolia,
Mas havia também uma enorme dose de coragem.
Ali estava a rendição masculina.
Concluí que aquele homem chorava apenas pelo direito legítimo de um homem chorar.
Danilo del Monte
sexta-feira, 6 de julho de 2012
ÁGUAS QUE NUNCA PASSAM
Águas passadas que não movem moinhos
Ainda conseguem mover a minha vida.
Viajo com a correnteza incerta,
Atinjo nuvens e criptas com o esforço de um passo.
Tenho um desejo de sofrer martirizado,
De agonizar junto a tudo o que agoniza
E de ajoelhar-me implorando vida aos pés do carrasco,
E - claro - sair incólume da tortura,
Apenas porque o carrasco de outrora já padece em podridão
E o escravo ainda vive, tão lúcido quanto uma mãe.
Venero os versos nus que soluçam nos bordéis.
Venero os bailes de máscaras do salão principal.
Não quero ver tudo se partir e arrebentar.
Quem foi que disse que nosso cofre é limitado?
Também não pretendo andar como andam os adivinhos no Inferno
- nostálgicos, infelizes e vendo apenas o que já passou, disse o Poeta -
O passo da perna direita mantém a esquerda a sustentar,
E a perna que sustenta não me cativa menos do que a que se projeta.
Quero ter a vista ampla, ser capaz
De olhar de lado sem esquecer o que ficou para trás.
Lá atrás ainda há sorrisos, basta um olhar resgatador.
Lá de trás felicidade mútua chega a soluçar.
Quem foi que disse que deve a criatura padecer com o criador?
Quem foi que disse que deve morrer o velho para que o novo tenha espaço?
A morte é tão bela - mas tão bela - que se torna superestimada,
E o meu desejo sôfrego é o de contemplar o que já foi vivo, vivido e amado,
De ter um pouco mais de idade,
De ser sepultado por um pouco mais de História
E sentir nas costas o peso esmagador de tantos séculos que imploram.
Não é a vontade de enterrar meu próprio tempo que ainda mama e engatinha,
Mas sim o de conciliar os cabelos brancos com os pretos caídos sobre os ombros,
A esperança de ontem com a desilusão que nos resta hoje em dia
Para, quem sabe, contemplar um nascimento divino - e real -.
E se tudo fosse atemporal?
Danilo del Monte
quarta-feira, 27 de junho de 2012
FILHAS DA DÉCIMA MUSA
Corre, estou na superfície, não demora,
Que a nossa alegria é por um triz.
Nossa mãe, que pela História ainda chora,
E que mais que mãe, foi professora,
Deu-nos de beber a água de seu chafariz.
Aluna grega, abra os braços.
Teu corpo de rainha junto ao meu de imperatriz.
Tua ginga de plebeia, meu olhar de camponesa.
Nossa malícia de aluna e de atriz...
Vem, que a mesma mão que faz a mesa
É a mão que debaixo da tua pele fogo ateia.
Teu dorso nu, sublime, de sereia.
Tua pele de princesa que princesa quis.
Teu corpo de rainha junto ao meu de imperatriz.
Tua ginga de plebeia, meu olhar de camponesa.
Nossa malícia de aluna e de atriz...
Vem, que a mesma mão que faz a mesa
É a mão que debaixo da tua pele fogo ateia.
Teu dorso nu, sublime, de sereia.
Tua pele de princesa que princesa quis.
Não para. O público para e repara
Minha saia amarrotando tua saia,
Teus dentes arranhando meu nariz.
Afrodite guarda quem te fez tão graciosa,
Guarda a mãe que falava e que era rosa,
E que rosa, encantou-se também com Flor de Lis.
Minha saia amarrotando tua saia,
Teus dentes arranhando meu nariz.
Afrodite guarda quem te fez tão graciosa,
Guarda a mãe que falava e que era rosa,
E que rosa, encantou-se também com Flor de Lis.
Tuas carnes, em mãos minhas, têm espasmos,
E os sussurros, no ouvido, são ardis.
E esses senhores, que nos olham pasmos,
O que querem, tão chocados e febris?
Engravatados e hostis, fazem tanto caso...
Por um deles, um ladrão, nossa mãe foi infeliz.
Minhas carnes em mãos tuas têm espasmos
Na violência dos gestos tão gentis.
O que querem, tão chocados e febris?
Engravatados e hostis, fazem tanto caso...
Por um deles, um ladrão, nossa mãe foi infeliz.
Minhas carnes em mãos tuas têm espasmos
Na violência dos gestos tão gentis.
Danilo del Monte
* imagem: Charles Mengin - Sappho, 1877
segunda-feira, 25 de junho de 2012
UM MATADOR DE GIGANTES
Filho meu, quanto tempo, que saudade,
Venha, entre, me pegou em boa hora.
A casa é sua, minha que não há de ser.
Que tem feito da vida e de você?
Estava pensando justamente agora
Em erguer uma mansão nessa cidade.
A casa é sua, minha que não há de ser.
Que tem feito da vida e de você?
Estava pensando justamente agora
Em erguer uma mansão nessa cidade.
Veja que bela porta de madeira,
Presente de um baiano boa vida;
Trouxe-a nas costas lá de Juazeiro.
Enriquei, mas não gosto de dinheiro
Dinheiro me atrai coisa dolorida,
Então ele é seu, use-o como queira.
Presente de um baiano boa vida;
Trouxe-a nas costas lá de Juazeiro.
Enriquei, mas não gosto de dinheiro
Dinheiro me atrai coisa dolorida,
Então ele é seu, use-o como queira.
Vamos, entre, não fique aí parado.
Dê um cigarro ao teu velho pai
Que felizmente agora ficou rico.
Reformarei a casa, mas não fico,
Partirei esse mês para Dubai,
Onde secretamente fui chamado.
Dê um cigarro ao teu velho pai
Que felizmente agora ficou rico.
Reformarei a casa, mas não fico,
Partirei esse mês para Dubai,
Onde secretamente fui chamado.
E viu que jogo duro quarta feira?
Eu ganhei a camisa do atacante,
Fui eu que lhe ensinei a jogar bola.
Desde que o Zico me acertou de sola
Tenho vivido por aí errante,
Ainda há sangue meu em sua chuteira.
Eu ganhei a camisa do atacante,
Fui eu que lhe ensinei a jogar bola.
Desde que o Zico me acertou de sola
Tenho vivido por aí errante,
Ainda há sangue meu em sua chuteira.
Será que você tem mais um cigarro?
Antes de ir, me compre uma cerveja
Enquanto eu penso na decoração.
O Zé do bar me deve um milhão,
E se não quiser me pagar, que seja,
Já vivo de vender santos de barro.
Danilo del Monte
*imagem: Windmills - Dom Quixote e Roncinante
Antes de ir, me compre uma cerveja
Enquanto eu penso na decoração.
O Zé do bar me deve um milhão,
E se não quiser me pagar, que seja,
Já vivo de vender santos de barro.
Danilo del Monte
*imagem: Windmills - Dom Quixote e Roncinante
quarta-feira, 20 de junho de 2012
SOBRE OS APERTOS DE MÃO
Antes de tudo
existem os “Parabéns”. É o ponto de partida para a nossa depreciação. Se não
houvesse o reconhecimento, quem sabe agora não estaria eu pensando em outras
literaturas?! Mas há... houve, e então existe o profundo desprezo pelo espelho,
que levanta o braço esquerdo quando se acena com o direito, e sem querer me dá
a melhor representação do que sou, o avesso dos próprios valores, oculto numa
aparência idêntica que ilude quem vê de longe ou de perto. Não pensem que não
me sinto culpado. Decerto quem me vê não consegue adivinhar, mas meu sorriso
atingiu o elogio da falsificação em níveis extremados. Não pensem que não me sinto
culpado, não pensem que posso dormir em paz. Meus pesadelos acontecem entre
montanhas de papel, entre aplausos, entre elogios e apertos de mão. Não pensem
que estou de acordo nesse trem, onde cada estação arranca do passageiro um
pedaço da sua inocência.
Infelizmente
meus palpites para a criação de um planeta não puderem ser ouvidos. Quando
nasci, já em ano falso de um falso calendário, o mundo estava pronto e há muito
tempo funcionava. Já era velho, e por ser velho carregava vícios sobre vícios,
males sobre males, e a ordem do jogo dizia que o padrão foi feito para se
seguir, e que a consciência pesada é a origem da sujeira e não a consequência, culpada
pelo fiasco do poder, pelo fracasso da vontade. Nesta filosofia, vi homens se
cumprimentando com suaves apertos de mão e piscar de olhos, vi porcos jogando
cartas, abutres bebendo uísque e aves de rapina discursando em voz suave. Não
pensem que não me sinto culpado, mas recebi também o piscar de olhos, senti a
palma macia das mãos brancas e acetinas roçarem as minhas, assisti ao jogo de
cartas, ganhei uísques e ouvi discursos, tudo isso porque viver é necessário e
impreciso.
Das
vozes que me cercam, a mais sábia e mais humana me absolve, eu estou dentro do
que não criei, e na mais baixa das esferas, sem ganhar nada, sem agir por
conta, mal sabendo como é que a vida funciona, tentando viver... Mas não me
basta, sinto respingos de lama na minha calça e andar em público já me é
constrangedor. Eu ainda me sinto culpado e a minha cama ainda é dura e desconfortável
(não como cama de pau, mas sim como as mais finas plumas). A cura de tudo isso
não é simples como parece, em cada canto há um lobo, e em cada homem, do mais
podre ao mais limpo, há direta ou indiretamente uma submissão à matilha. Dessa regra, exceção às outras regras, não se escapa. Infeliz a criatura que
disso sabe e toma consciência, malditos os seus olhos que se abrem quando não
se fecha o coração. Por essa razão os suicidas do mundo nos atingem e nos
ofendem, porque nos mostram que somos covardes e, acima de tudo, que já não era
mais possível nos aturar; e como última nobreza (e maior temeridade) abrem
espaço para que continuemos infectando essa cicatriz.
Danilo del Monte
terça-feira, 19 de junho de 2012
A MÃO ROMANA
Sou como um homem de porcelana,
Um aperto de mão estilhaça-me os ossos,
Um olhar de aprovação me queda ao chão.
A grave calma voz de quem me chama,
Se amigável, deixa-me em destroços,
Se bruta, me oferece nobre redenção.
Não à fama, não à cama, não à lama.
Homem de gelo, larga a minha mão.
*****
*****
A mão que aperta a minha mão
E com tamanha força a segura,
Parece, nesse toque, perceber.
Na manga trago a redenção,
Na manga a justiça obscura
E afiada implora pra nascer.
Romano o homem que me atura.
Romana a febre de vencer.
Danilo del Monte
terça-feira, 12 de junho de 2012
JÁ FAZ TEMPO
Tempo, tanto tempo...
De lá pra cá nem uma graça,
De lá pra cá nem um adeus,
De lá pra cá nem os olhos teus
Me interrogando “o que se passa?”
Tempo, tempo, tanto tempo...
Há quem diga que o tempo é irrelevante,
Há quem diga que o tempo é como o vento
Que apaga velas e ventila incêndios.
Há quem use o tempo para arremessar amor pela janela;
Mas eu conheço a origem das palavras,
Mas eu conheço o que germina sob elas,
E não são belas as flores que brotam desse tempo.
Há quem diga que o tempo é irrelevante,
Há quem diga que o tempo é como o vento
Que apaga velas e ventila incêndios.
Há quem use o tempo para arremessar amor pela janela;
Mas eu conheço a origem das palavras,
Mas eu conheço o que germina sob elas,
E não são belas as flores que brotam desse tempo.
Danilo del Monte
Maio de 2012
sexta-feira, 25 de maio de 2012
CANSAÇO
Acho que não é doença isso que tenho. Acho que não é dor isso que sinto. Acho que tudo não passa de cansaço. Estou exaurido, injuriado de tanto lutar e ser vencido. Estou desiludido até mesmo da farsa que criei para sobreviver. Penso que o peso que carrego dentro dos olhos é tão grande que talvez fosse melhor furá-los; depois penso que não, que tudo o que já vi se apegou a mim como o fedor de cigarro que exalo, e depois de tanto tempo parar de fumar ou de enxergar já não faria a menor diferença.
Estou cansado de correr. Não posso simplesmente me deitar numa rede sob o sol ou no asfalto quente pelo resto dos meus dias e rir descaradamente quando o bom, quando o sóbrio, quando o exemplar morrer antes de mim? Alguém sabe por que estou correndo? Estou cansado de existir e continuar nesse erro mesmo sabendo que a existência é a maior das pegadinhas que o fado nos pregou. Estou cansado de errar e rir dos próprios erros, porque chorar seria indigno do homem.
O fato maior é que estou cansado de brigar, e mesmo brigando contra a lucidez, a sapiência da velhice me atingiu na mocidade. Briguei para nascer como hoje brigo para viver. Andar sem pisar nas poças d’água, correr sem machucar as pessoas, cumprimentá-las, não gritar depois das vinte e duas, ceder o assento preferencial, não dormir no ponto, não se atrasar, não chegar muito adiantado, não esquecer de assinar, nunca fechar o cruzamento, nunca abrir a caixa de pandora, entregar na data, pagar as contas, estender a mão... Quantas horas semanais de prostituição... para quê?
No fundo eu conheço todas as respostas que busco, e elas são negras, veem batendo as asas como um corvo que não grita porque traz no bico um frasco de veneno. No fundo todas as ideias sublimes são negras, e o mais otimista dos homens morre todos os dias de desilusão. Louvado seja o mentiroso que mantém nas almas um fundo de esperança. Louvado seja o porco que dia após dia nos engana, e que se faz de sujo para não nos deixar reparar em nós mesmos.
Se ao menos minha cabeça explodisse de uma vez... Mas ela vai estourando pouco a pouco, bomba por bomba, flash por flash, verdade por verdade. O fato é que eu não quero mais ser homem, e não quero mais isso que chamam de juízo. Não sou um bom vivente porque desprezo a vida, nem sou um suicida porque tomo a morte como covardia. Então o que sou? Sou um homem cansado, e isso me pesa.
segunda-feira, 21 de maio de 2012
VEJO CRIANÇAS
Vejo crianças que brincam nas ruas.
Vejo crianças que brincam nos parques.
Vejo que crianças que correm, que gritam,
Que tropeçam, levantam, se riem e se jogam contra os pais.
Vejo crianças que fogem dos pais
E, num ato de defesa,
Não me demoro em abrir os jornais.
Vejo crianças que brincam nos parques.
Vejo que crianças que correm, que gritam,
Que tropeçam, levantam, se riem e se jogam contra os pais.
Vejo crianças que fogem dos pais
E, num ato de defesa,
Não me demoro em abrir os jornais.
Vejo crianças que me enfraquecem
A cada joelho ralado contra o chão,
A cada riso de deboche sobre a vida adulta,
A cada carência pretensiosa e egoísta.
Maquiavélicas crianças que me deixam mais fraco...
Crianças que não param um minuto de surgir,
Crianças que sugam de nós nossa miséria
E a cada abraço roubam um pouco de agonia.
Corro desesperado em busca dos jornais.
A cada joelho ralado contra o chão,
A cada riso de deboche sobre a vida adulta,
A cada carência pretensiosa e egoísta.
Maquiavélicas crianças que me deixam mais fraco...
Crianças que não param um minuto de surgir,
Crianças que sugam de nós nossa miséria
E a cada abraço roubam um pouco de agonia.
Corro desesperado em busca dos jornais.
Vejo crianças e me apavoro...
Sinto-me submisso ao tempo,
Sinto-me de repente dentro da espécie mais trivial de homens.
Vejo essas crianças e logo me torno tudo o que não quis,
E não tarda um traiçoeiro sorriso tenta me incriminar...
................................................................................................
Vejo crianças que me roubam sorrisos...
Por deus, onde estão os jornais?
Sinto-me submisso ao tempo,
Sinto-me de repente dentro da espécie mais trivial de homens.
Vejo essas crianças e logo me torno tudo o que não quis,
E não tarda um traiçoeiro sorriso tenta me incriminar...
................................................................................................
Vejo crianças que me roubam sorrisos...
Por deus, onde estão os jornais?
Danilo del Monte
terça-feira, 15 de maio de 2012
AS APRESENTAÇÕES
Eu sou uma palavra,
Eu não sou uma voz.
E você, afinal, o que é?
Você deve ser palavra também.
Você me parece uma palavra muda
Que muda da palavra seu sentido original.
Eu não sou uma voz.
E você, afinal, o que é?
Você deve ser palavra também.
Você me parece uma palavra muda
Que muda da palavra seu sentido original.
Eu sou a sua sombra,
Seu pedido de socorro.
Mas você, afinal, o que é?
Você parece ser o meu amparo,
Você demonstra ser o meu espelho,
E deforma no meu rosto a imagem original.
Seu pedido de socorro.
Mas você, afinal, o que é?
Você parece ser o meu amparo,
Você demonstra ser o meu espelho,
E deforma no meu rosto a imagem original.
Eu sou a sua corda,
Mas não seu professor.
Mas você, então, é o quê?
Você deve estar acima de mim
E desce correndo quando teme subir,
Assim destrói da vida o seu sentido original.
Mas não seu professor.
Mas você, então, é o quê?
Você deve estar acima de mim
E desce correndo quando teme subir,
Assim destrói da vida o seu sentido original.
Danilo del Monte
imagem: quadro de René Magritte...
imagem: quadro de René Magritte...
sexta-feira, 11 de maio de 2012
MONOCROMÁTICO E COLORIDO
Poesia curta, sem o
que dizer
- simples e tão singelo indriso -
Rosto colorido ainda não o pude ver.
- simples e tão singelo indriso -
Rosto colorido ainda não o pude ver.
Seria atrevimento
pedir-te um sorriso
Tão suave quando o anoitecer?
Talvez, no entanto, sorrir é preciso.
Tão suave quando o anoitecer?
Talvez, no entanto, sorrir é preciso.
Se eu pudesse te
ensinar a viver...
Se eu pudesse, ao
menos, saber o que é isso...
Danilo del Monte
segunda-feira, 7 de maio de 2012
SOBRE EPIFANIAS E DEMÔNIOS
Epifanias deviam bater na porta e
pedir licença para entrar. Não é assim não, chegando e se apossando como quem
já é de casa. Na maior cara lavada entra, senta-se no sofá, desliga a TV e se
presta a falar com a gente sobre algum assunto demasiado pessoal e importante.
Não, não é assim... Tem que tocar a campainha, identificar-se e me dar a opção
de receber ou dizer: "não é benvinda, vá-se embora", ou talvez ficar
quieto, de acordo com a minha covardia, respirando tranquilamente e esperar que a intrusa volte os passos
imaginando que a casa está vazia.
Seja como for, benvinda ou não,
se pediu licença ou se invadiu minha pobre e falsa residência, entrou. Quantas
coisas me disse que eu não queria ouvir... tantas eu já supunha, mas fugia,
outras eu sequer fazia idéia que pudessem existir. De qualquer forma, tenho
sido desonesto com tanta gente... Custa-me esta meia confissão, mas o uso
egoísta das vidas humanas é um dos meus passatempos favoritos; e enquanto
observo o interior alheio e me encanto, esqueço de quem sou e do que sou feito.
Sou falso... mas o que há no mundo que pode ser considerado verdadeiro? Talvez
somente a confissão da minha farsa.
Sendo direto, substituo os meus
demônios pelos demônios alheios, e ao passo que extermino alguns que vivem no
subsolo dos outros, os meus próprios se acumulam e dão cria dentro de mim.
Demônios... Se deveras nascem no
inferno, temos dentro de nós, cada um, um inferno particular, ou somos o
inferno por inteiro, horrendo e dantesco, feito de círculo sob círculo, de
penitência sob penitência, porque cada um é culpado da própria mediocridade e
do leite envenenado que mamou na infância. Força atrai fraqueza. Uma falsa
força atrai muito mais fraquezas e o gosto protecionista e egoísta.
Epifania... eu gosto dos demônios
alheios e prefiro que ninguém toque nos meus. Cultuo o inferno com amor, como
um pescador cultua os seus anzóis ou um garoto suas figurinhas. Tenho sido
desonesto com vocês, mas é esta a forma que tomou em mim a falsidade do mundo,
todos a tem, e a minha, querendo ou não, é do tipo mais nobre. Abram os livros,
crianças, abram os livros, com tantos livros que há no mundo, que diferença
faria, afinal, o meu poema dantesco?
Danilo del Monte
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