sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

SOBRE ESTRADAS E VIAJANTES




É sabido de todos que o homem, ao primeiro sinal de domínio sobre as próprias pernas (o que o livra da pose de um animal qualquer) deve começar a caminhar. Em nenhuma literatura do mundo está escrito que projetar a perna direita a frente da esquerda e depois a esquerda a frente da direita é um trabalho fácil, mas creio que é da nossa natureza acreditar na ilusão; ainda assim digo que seria uma tarefa menos árdua se tudo se resumisse a este simples processo físico, porém há um agravante que torna tudo cansativo e desastroso: para se caminhar, é necessário uma estrada, ou, então, a vida teria menos sentido do que aqueles fúteis em que conseguimos pensar. Se eu soubesse... se eu soubesse disso no início talvez teria feito menos esforço para tirar as mãos do chão, talvez me divertisse por mais tempo engatinhando, talvez apreciasse mais a pose de um animal, mas como todo conhecimento útil só nos é revelado quando já é inútil sabê-lo, ergui-me e dei o primeiro passo, ainda amparado por cuidadosos braços que me cercavam de todos os lados.

Durante muito tempo andei olhando os arredores e procurando uma estrada que fosse do meu agrado, nada que esboçasse a necessidade de correr, e acabei encontrando algumas coisas que me fizeram pensar. Meus olhos, que nunca se fecharam, por maldição sabe-se lá de quem, viam além dos muros e dos guardiões de cada caminho que surgia em minha frente. Quantos primeiros passos dei... quantos voltei por arrependimento... Não sei se culpo a lucidez dos olhos, sabido que nem sempre enxergam o que é real, não sei se culpo a covardia das pernas, que, mesmo mecânicas, sabem desobedecer. Decida-se livremente cada um entre os olhos e as pernas, dou a liberdade a todos e sinto até certo prazer em ser julgado. Volto à peregrinação: O fato é que nem mesmo eu posso dizer em que lugar estaria se não tivesse encontrado a mais linda passagem que já vi. Era algo de emocionar os sentidos. Tinha uma entrada estreita em arco, mas feita de pedras grandes e vistosas, como as de um templo, guardada por uma mulher de beleza triunfante. Quase inconsciente, aproximei-me temeroso e perguntei com voz inconstante: “Como se chama?”, e ela interrompeu o sorriso para dizer: “Pode me chamar de Sonho”. Quis apresentar-me, mas ela disse que eu já era conhecido e fiquei sem saber o que dizer. Não havia nada a ser feito a não ser passar pela entrada e seguir aquele caminho tão lindo quanto a guardiã. Porém, ao dar o primeiro passo, ao que a linda mulher respondeu com um aceno positivo de cabeça, detive-me com a voz de alguém que aparentemente estava muito próximo de mim, e não era difícil perceber que se tratava de outra voz feminina.

– Essa fácil atração pela beleza está longe de ser a maior virtude do homem. – virei-me para descobrir de onde vinha a mensagem, e encontrei uma mulher que guardava a entrada de uma outra estrada ao lado. Por certo não a vi antes pelo feitiço com que a primeira me condenara. A mulher que me lançou essas palavras não era bela, mas reparei que seus olhos foscos tinham a lucidez que os olhos brilhantes de Sonho não tinham.

– Não entendo o que quer dizer. – respondi meio encabulado. Ela não repetiu, nem tampouco explicou a frase, mas disse que o caminho que guardava podia não ser tão belo quanto o que me fascinara, mas era seguro e não machucava tanto os pés.

– Os pés são fortes para o calço, como as mãos macias para a carícia. – era Sonho que intervinha, falando de um jeito que não combinava com a doçura de sua voz – Quantos já não correram demais pela maciez do chão e tropeçaram... A escolha deve ser livre, como livres deixo aqueles que correm de mim porque se intimidam frente a beleza. – Calou-se Sonho. Calou-se a segunda dama. Eu entrei pelo caminho da fascinação. Diabos, pensei minutos depois, esqueci de perguntar o nome da outra mulher.

Algo me dizia que eu seria feliz em minhas escolhas. Ora essa, por que não haveria de ser? É sabido que todos nós precisamos de uma estrada para caminhar, já disse, e eu havia ingressado justamente na mais bela. A paisagem inicial era de fazer chorar lágrimas de comoção, a luminosidade, as pedras do calçamento, a beleza dos arredores, a liberdade de poder ser eu mesmo num lugar deserto. Como seria possível que tão bela estrada guardada por tão bela guardiã estivesse assim tão vazia? A solidão me fazia refletir, e enquanto eu andava, as palavras da mulher misteriosa davam voltas em minha cabeça como insetos dão voltas em torno da luz: “essa fácil atração pela beleza está longe de ser a maior virtude do homem”. Não era segredo essa minha inclinação para me perder atrás de qualquer encanto, e também, nunca me foi motivo de preocupação; ademais,  sempre ouvi dizer que essa tendência é um sinal de bom caráter, um sinal de virtude, e o sentido mais lógico era exatamente este. Continuei andando, mas nunca deixei de lado essa reflexão.

Por que voltam o caminho esses senhores? Por que correm? Depois de muito caminhar, notei que, na verdade, aquele não era um lugar exclusivamente feito para mim, havia mais pessoas, e muitas delas (talvez a maioria) não andavam, mas corriam em sentido contrário. É difícil saber os motivos que levam as pessoas a cometer atos estranhos, o mais certo é que ninguém no mundo se conhece, e isso é uma grande vantagem, ou acabaríamos em amarga solidão. Tentei conversar com uma senhora que voltava como quem tem o pai na forca, mas não tive tempo sequer de lhe chamar, tão rápido ela passou. Com outras duas pessoas, a mesma frustração. É impossível conversar com alguém que corre em sentido contrário ao seu. Curioso, porém, foi o que notei um pouco mais a frente. Um homem corria quase que em círculo: Passos adiante, parada, algo que parecia reflexão, meia volta, passos em retorno, parada, reflexão novamente, passos adiante... e assim seguia em seu ciclo vicioso. Seria esse o homem que me daria informações. Então me aproximei e indaguei a ele a situação daquele contra-fluxo em massa.

– Não sei dizer, não sei o que posso fazer – tinha o rosto cansado e perplexo – o caminho, meu jovem, muda tanto e tantas vezes que eu já nem sei onde estou. Retornei ao passar por um breu e cá estou, sem saber se o atravesso ou desisto logo desse inferno.

– Mas eu não vi nenhum trecho escuro, nada que assustasse, nada que fosse difícil de atravessar.

– É porque tudo é igual na sua idade, o que é belo permanece belo, o que é horrendo permanece horrendo, e fazer escolhas se torna uma tarefa boba e trivial. Mas conforme se anda, percebe-se que nem tudo o que é necessário cabe nesse caminho que tomamos... – e ao dizer esta última frase, arregalou os olhos como se desse a si mesmo a inspiração que faltava. Não querendo me dizer mais nada, pisou decididamente na faixa de retorno e começou a andar. Já há dez passos de mim, lembrei-me do primeiro erro e não quis cometer o segundo.

– Senhor... Como se chama? – gritei

– Sou Medo, – respondeu sem virar o rosto – mas não é esse meu nome de batismo, já carreguei outros rótulos ao longo da jornada.

E não é que aquele homem estava certo?! Depois daquele ponto, o caminho se alterava o tempo todo. Se não ponho referências, como vemos em qualquer estrada cotidiana, dessas que trafegam carros, é porque não havia mesmo nenhuma sinalização, nenhum mapa, e só não digo que é possível se perder porque também não há como saber, caso isso aconteça. Aquela já nem parecia a estrada com que me encantei. Conforme as pedras do calçamento ficavam para trás, eu aprendia que é necessário saber nadar para aproveitar um mergulho no rio, e que antes de subir uma montanha é melhor aprender a respirar, mas montanhas e rios agora pareciam coisas de outro mundo, tudo o que eu via eram sombras, sombras, sombras... Quantos prantos sentidos não me invadiram os ouvidos, quantas indagações não me invadiram o pensamento... Tudo isso fez despertar um monstro dentro de mim. Talvez despertar não seja a palavra mais adequada, não estou certo se havia em mim um monstro que dormia, se não havia, há agora, e a palavra correta seria criar ou nascer. De uma forma ou de outra, ignorando questões semânticas, o monstro que passou a existir me incutia certo terror e cheguei a cogitar voltar o caminho como o pobre Medo havia feito, mas provavelmente ele não tinha o orgulho degenerativo que carrego em mim, e voltar tudo aquilo também seria uma grande empreitada, sem falar na vergonha de ter de olhar nos olhos arregalados de Sonho e dizer: “Desculpe”. Foi depois disso que o pânico, a exemplo do monstro, começou a crescer na minha cabeça outrora pueril, e foi talvez esse pânico que me permitiu avistar de longe um homem que fumava numa curva da estrada, encostado ao muro de pedras. Usava uma roupa preta, estava de capuz e mantinha a cabeça baixa, e como tudo o que se ouve serve para alguma coisa, decidi pedir algum conselho:

– E o senhor, como se chama? – E ele me respondeu com a voz mais tranquila e grave que já ouvi:

– Eu, meu jovem, me chamo Desespero. Não costumo conversar com viajantes da estrada, creio que minha figura os afugenta. – e então levantou o rosto para mim...

Não sei descrever como era essa figura Desespero, que afugentava os viajantes, mas alguma coisa eu senti naquele olhar. Afastei alguns passos e ele me entendeu. Olhei para trás e vi o caminho de volta, depois olhei para frente e tentei decifrar as condições da estrada, mas meus olhos, embora ainda lúcidos, já não possuíam o alcance dos primeiros anos. Então olhei para trás novamente, e novamente para frente. Gastei alguns minutos nessa análise, não porque estivesse ainda escolhendo entre as alternativas, mas sim porque meu corpo estava entregue a um movimento mecânico enquanto minha cabeça trabalhava em outros horizontes. “Essa fácil atração pela beleza está longe de ser a maior virtude do homem”... Eu entendia... Definitivamente agora eu entendia as palavras daquela mulher, e as palavras formavam uma frase tão óbvia que senti vergonha da minha falta de percepção. Tudo era óbvio, e por ser óbvio parei de caminhar pela primeira vez e sentei-me no chão, de cabeça baixa. Posso dizer que derramei algumas lágrimas, mas meu estado de perplexidade era tão grande que não estou certo disso, então mantenho a dúvida. Desespero ria-se de mim como quem ri-se de um bêbado que cai na porta do bar, mas eu só pensava agora naquela estranha mulher que dizia tudo tão claramente, aquela mulher que agora eu sabia por que despertou a minha atenção, e sabia até mesmo o seu nome de batismo, que carrega consigo, único e inalterável desde sempre.

Danilo del Monte


* ilustração: fotografia de Mariana Altivo 

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